Quanto tempo é necessário para escrever um artigo de filosofia?

Ao longo dos três últimos anos monitorei o tempo que gasto com tarefas do trabalho (com esta ferramenta), inicialmente de modo mais amplo e depois apenas com foco em atividades relacionadas à pesquisa. Os objetivos iniciais do monitoramento combinavam um pouco curiosidade e busca de autoconhecimento, a necessidade de manter um registro para relatórios ao final do semestre e também uma pretensão de entender em que medida a atividade de pesquisa era compatível com a carreira de professor de um instituto federal.

Infelizmente, no período em questão, não monitorei o ciclo completo de nenhum trabalho (do início do planejamento à publicação) e por isso a pergunta do título ficará sem uma resposta mais direta. Mas os registros relacionados à revisão de dois artigos surpreenderam-me bastante e é com base neles que faço algumas considerações.

Em cada uma das revisões consideradas, tinha em mãos uma versão completa provisória de um artigo (já submetida a periódicos especializados) e, com base nas considerações de pareceristas dessas revistas, fiz revisões substantivas em cada um dos artigos. Essas revisões envolveram ler itens bibliográficos novos e repensar, reorganizar e reescrever porções substativas do texto. Uma das revisões levou cerca de 100 horas (artigo sobre reforma das práticas de responsabilização) e a outra levou aproximadamente 200 horas (artigo sobre a evolução dos juízos sobre responsabilidade). Noto que o primeiro artigo tinha uma trajetória anterior mais longa de elaboração e revisões que não foram computadas.

Embora haja relatos de trabalhos de filosofia que levam vários anos para serem elaborados e publicados, não encontrei relatos mais refinados sobre o tempo efetivamente empregado neles. Assim, essas observações poderão não ser representativas da atividade de outras pessoas. Mas, supondo que guardem algum grau de generalidade, podemos elaborar algumas considerações.

  • Se a elaboração da versão inicial levar pelo menos o mesmo tempo do que uma revisão substantiva (apostaria que leva mais), então a escrita de um artigo somada a uma única revisão substantiva pode levar entre 200 e 400 horas de trabalho.
  • Para alguém que trabalhasse 40 horas semanais dedicadas exclusivamente à leitura e à escrita, a escrita de um artigo levaria entre 5 e 10 semanas de trabalho.
  • No Instituto Federal Farroupilha, onde trabalho, coordenadores de projetos de pesquisa dedicam (em princípio, segundo as normativas institucionais) 6 horas semanais a atividades de pesquisa, que incluem também atividades de orientação de estudantes, formulação de projetos e relatórios. Um pesquisador que conseguisse dedicar 5 horas semanais à leitura e à escrita levaria entre 40 e 80 semanas para publicar um artigo. Na prática, sem trabalhar em períodos de férias, o pesquisador conseguiria publicar um artigo a cada um ou dois anos, sem considerar que o trabalho fragmentado pode ser menos eficiente.

Apesar de limitadas e pouco generalizáveis, penso que informações com as acima são necessárias se quisermos tomar boas decisões nas esferas individuais, institucionais e mesmo em políticas públicas relacionadas às áreas de educação e pesquisa. Creio que não haja um entendimento coletivo na filosofia brasileira, por exemplo, sobre quão produtivo um professor de instituto federal ou de um programa de pós-graduação deveria ser em termos dos resultados de sua atividade. E creio que normativas institucionais como a que prevê seis horas semanais dedicadas a um projeto de pesquisa não estejam ancoradas em uma visão realista sobre as condições necessárias para o desenvolvimento dessa atividade. De modo ainda mais amplo, podemos levantar questões sobre o custo da atividade de pesquisa, sobre o que podemos esperar de estudantes de pós-graduação e de iniciação científica, entre outras. Os gregos já sabiam que viabilizar o tempo livre era condição necessária para a vida teórica.

Reconhecer altas habilidades e superdotação na escola

Trabalho com vários estudantes que têm algum tipo de diagnóstico que justifica um tratamento pedagógico diferenciado para sua aprendizagem. Na maioria desses casos, os estudantes apresentam dificuldades que exigem algum tipo de suporte especial. Nenhum dos estudantes com que trabalho atualmente apresentou diagnóstico de altas habilidades ou superdotação. Ainda assim, dependendo da definição utilizada, entre 2% e 5% da população se enquadra nessas condições.

Uma parte das razões para baixa identificação de casos de altas habilidades e superdotação se deve à má compreensão do que essas condições representam, seja por falta de uma visão completa ou por se recorrer a estereótipos distorcidos. A parte que por vezes é difícil de entender é que estudantes com essas condições podem apresentar inúmeras dificuldades (em diferentes aspectos, incluindo o aprendizado acadêmico) e também necessitarem de um atendimento diferenciado para renderem tanto quanto seu potencial permite.

Esta tabela de Linda Silverman, adaptada abaixo a partir de sua tradução neste artigo de Angela Virgolim, ajuda a darmos um passo inicial em direção a uma compreensão mais completa e realista dos sinais que podem ajudar a identificar estudantes com altas habilidades e superdotação na escola.

Tabela: Os altos e baixos da superdotação

ASPECTOS FORTESO OUTRO LADOPOSSÍVEIS
CONSEQUÊNCIAS
Apresenta maior nível
de compreensão do que
os colegas de mesma
idade
Acha que a forma de raciocínio
e compreensão dos colegas são
“bobas” e expressa sua opinião
para eles.
Os colegas a evitam; os adultos a
percebem como faladora demais.
A criança perde amigos.
Habilidades verbais
avançadas para a idade
Conversa mais do que os
colegas, que não entendem sobre
o que ela está falando. A criança
quer falar sempre, não dando a
vez aos outros.
Os colegas a percebem como
pretensiosa e superior aos outros,
e a excluem. A criança fica
solitária.
Pensamento criativoResolve problemas de seu
próprio jeito, e não da forma
ensinada pelo professor.
O professor se sente ameaçado,
percebe a criança como
desrespeitosa da figura de
autoridade e decide reprimi-la,
o que estabelece o palco para a
rebelião.
Rápida no pensamentoTorna-se facilmente entediada
com a rotina e pode não
completar suas tarefas. Por outro
lado, pode acabar rapidamente
suas atividades e ficar vagando
pela sala, procurando o que fazer.
O professor pode achar
que a criança é desatenta,
negativa ou com problemas
comportamentais, e que exerce
má influência nos colegas.
Alto nível de energiaPode ser muito distraída,
começando várias tarefas e não
terminando nenhuma.
A criança pode se desgastar
tentando realizar muitos
projetos de uma vez só. Sua alta
energia pode ser confundida
com Transtorno de Desordem
da Atenção e Hiperatividade
– TDAH. Medicação pode
ser sugerida para “acalmar” a
criança.
Grande poder de
concentração
Algumas vezes gasta tempo
demasiado em um projeto; fica
perdida nos detalhes e perde os
prazos de entrega,
Notas baixas, uma vez que as
tarefas não são completadas,
o que causa frustração para a
criança, seus pais e professores.
Pensamento ao nível do
adulto
O pensamento ao nível do
adulto não se faz acompanhar de
habilidades ao nível do adulto,
tais como a diplomacia. Pode
falar coisas de forma rude ou
desconcertante.
Tanto os colegas quanto os
adultos podem achar a criança
rude, ofensiva e sem tato,
passando a evitá-la.
Tabela de Linda Silverman, adaptada abaixo a partir de sua tradução neste artigo de Angela Virgolim.

Dicas sobre práticas editoriais?

Uma parte do trabalho de mestrandos, doutorandos e pesquisadores em geral envolve aprender a navegar o processo de submissão e publicação de trabalhos, especialmente de artigos e eventualmente também de livros.

Na área de filosofia, foi mais fácil para mim entender como funcionam revistas internacionais do que revistas brasileiras. E isso se deu principalmente pela transparância das próprias revistas e também por relatos compartilhados em blogs de acesso aberto. Por exemplo, é fácil ter uma estimativa sobre quanto tempo várias revistas estrangeiras levam para avaliar e publicar um artigo, e também sobre com que frequência oferecem comentários de boa qualidade aos autores e quais são suas taxas de rejeição.

De modo similar, existe orientação sobre o processo de publicação de livros em grandes editoras, sendo incentivada, por exemplo, a apresentação de propostas (ou projetos) de livros, mais do que a apresentação de um livro já pronto.

Minha percepção é que é muito mais difícil conseguir informações similares sobre revistas e editoras brasileiras. Sobre o processo de publicação de livros, em particular, o site de muitas editoras cobra o envio de material já completo. Bem, um livro é um projeto que exige um investimento de tempo considerável, e seria interessante poder apresentar e discutir propostas com editores potencialmente interessados, talvez para benefício de ambas as partes. Dada essa escassez de orientação, este que vos escreve aceita sugestões de informações relevantes, especialmente sobre o processo de publicação de livros no Brasil, daqueles que tenham passado pela experiência ou que possam indicar onde encontrá-las.

A caneta e o mouse (ou: avaliação na época da inteligência artificial)

Pessoas no mundo todo têm discutido (por exemplo, aqui e aqui) como tecnologias de produção textual como o ChatGPT impactarão o ensino em universidades e escolas. O problema mais urgente é como esse tipo de tecnologia afetará a avaliação dos estudantes a partir de exercícios que envolvam produção textual. A gravidade do problema, obviamente, depende do poder da tecnologia disponível. Pedi para o conversador digital responder a algumas perguntas e o resultado parece, no mínimo, digno de atenção:

Pergunta: “Qual é a importância das definições na filosofia de Sócrates?”

ChatGPT: “Na filosofia de Sócrates, a importância das definições residia na crença de que ter uma compreensão clara do significado de um conceito era necessário para entender o próprio conceito. Sócrates acreditava que, examinando as definições de diversos conceitos, poderia-se ter uma compreensão mais profunda da natureza desses conceitos e de como eles se relacionavam uns com os outros. Para Sócrates, a busca por definições era uma maneira de adquirir conhecimento e sabedoria, pois ele acreditava que ter uma compreensão clara do mundo ao nosso redor era essencial para viver uma vida boa e significativa.”

Pergunta: “Quais são os conhecimentos de filosofia mais importantes para um estudante do ensino médio brasileiro?”

ChatGPT: “Os conhecimentos de filosofia mais importantes para um estudante do ensino médio brasileiro podem variar dependendo da escola e da grade curricular. No entanto, alguns tópicos comuns em cursos de filosofia do ensino médio no Brasil podem incluir:

  1. Introdução à filosofia: conceitos básicos, história da filosofia e métodos de pensamento filosófico.
  2. Filosofia antiga: os filósofos pré-socráticos, Platão, Aristóteles e outros filósofos importantes da Grécia antiga.
  3. Filosofia moderna: filósofos como René Descartes, John Locke, Immanuel Kant e outros que influenciaram a filosofia moderna.
  4. Ética: questões morais e a natureza da moralidade, incluindo a teoria do bem e do mal, o livre-arbítrio e a responsabilidade moral.
  5. Filosofia política: ideias sobre o Estado, o poder e o papel do indivíduo na sociedade, incluindo teorias da justiça e da democracia.
  6. Filosofia da mente: questões sobre a natureza da mente e da consciência, incluindo a relação entre a mente e o corpo.

Esses são apenas alguns exemplos de tópicos que podem ser abordados em um curso de filosofia do ensino médio. É importante notar que essa lista não é exaustiva e que outros tópicos também podem ser incluídos, dependendo da escola e do professor.”

A resposta acima, apesar de bem redigida e com sentido, me pareceu uma mera repetição de listas de conteúdos prontamente encontradas em ementas de filosofia. Por isso, tentei tornar a tarefa do robô mais sofisticada nos dois exemplos abaixo. Cada um poderá fazer sua reflexão sobre o possível impacto desta tecnologia em alguns elementos bastante tradicionais de nossos sistemas de ensino, especialmente nas humanidades.

Pergunta: “Quais são as discussões existentes sobre o papel da filosofia no ensino médio?”

ChatGPT: “Existem várias discussões sobre o papel da filosofia no ensino médio, incluindo:

  1. A importância da filosofia para o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo: muitos argumentam que a filosofia é importante no ensino médio porque ajuda os estudantes a desenvolver habilidades de pensamento crítico e reflexivo, o que os ajuda a entender e analisar de forma mais profunda os problemas e questões do mundo ao seu redor.
  2. O valor da filosofia para a formação moral: alguns argumentam que a filosofia é importante no ensino médio porque ajuda os estudantes a pensar de forma mais profunda sobre questões éticas e morais, o que pode ajudá-los a tomar decisões mais bem informadas e responsáveis ​​em suas vidas.
  3. A filosofia como uma forma de aprendizado interdisciplinar: alguns argumentam que a filosofia é importante no ensino médio porque ajuda os estudantes a pensar de forma mais crítica sobre questões que transcendem as fronteiras disciplinares, o que os ajuda a compreender melhor o mundo ao seu redor.
  4. O papel da filosofia no desenvolvimento de habilidades de comunicação: alguns argumentam que a filosofia é importante no ensino médio porque ajuda os estudantes a desenvolver habilidades de comunicação, como debater, discutir e argumentar de forma clara e eficaz.

Esses são apenas alguns exemplos de discussões sobre o papel da filosofia no ensino médio. É importante notar que diferentes pessoas podem ter opiniões diferentes sobre a importância da filosofia no ensino médio e que essas opiniões podem variar dependendo de fatores como as crenças pessoais, as experiências de vida e as expectativas de aprendizado.”

Pedido: “Escreva um soneto sobre a caneta e o mouse.”.

ChatGPT: “A caneta e o mouse, dois companheiros
Que me acompanham na jornada diária
A caneta, tão velha e já tão querida
O mouse, tão novo e tão tecnológico

A caneta, meu braço direito na escrita
O mouse, meu braço esquerdo na digital
Juntos, eles me ajudam a criar e produzir
Com a caneta eu posso escrever com calma
Com o mouse eu posso navegar com rapidez

A caneta e o mouse, dois amigos fiéis
Que me acompanham em todas as minhas tarefas
Sem eles, eu estaria perdido e sem rumo
Eu agradeço por tê-los ao meu lado

A caneta e o mouse, dois tesouros valiosos
Que me ajudam a viver minha vida plenamente.”

Vida teórica e tempo livre

“Referindo-se à independência das necessidades e ao tempo livre (schōle) como valores e como critérios para escolher o tipo de vida ao qual dedicar-se, o que Aristóteles estava fazedo era conectar o ideal da vida teórica a tendências bem conhecidas na moralidade popular grega, transcendendo as oposições platônicas entre filosofia e senso comum.” (p. 74)

“A primeira condição necessária para a theōria, a posse moderada de bens e liberar-se das necessidades, assim, constitui a base da segunda condição necessária, schōle…” (p. 74)

“De acordo com Aristóteles, schōle é uma condição necessária para o pensamento a partir de um outro ponto de vista também; ela distingue a reflexão filosófica do debate sofístico, no qual os debatedores batalham contra seus adversários de modo a ganhar e são movidos pela necessidade de autoafirmação. O que é necessário para se alcançar a verdade, ao contrário, é a reflexão tranquila.” (p. 75).

As citações são traduções minhas a partir do livro Aristotle: his life and school, de Carlo Natali (Princeton University Press, 2013). Além de darem uma ideia sobre o tipo de vida e investigação almejado por Aristóteles, essas passagens nos lembram da origem da palavra ‘escola’ e da importância da disponibilidade de certo tipo de tempo livre na atividade investigativa—uma condição que tem relativa fragilidade em nossas instituições de ensino e pesquisa.

Algumas notas sobre ensino remoto e presencial no nível médio

Devido à panemia, a instituição onde leciono permaneceu por praticamente dois anos inteiros ensinando apenas remotamente. Seguem algumas impressões a respeito de como o ensino a nível médio se comportou nesse período.

Antes de retornar ao ensino presencial, pensei em registrar aqui algumas notas que poderiam ser úteis para pensar sobre o ensino remoto. Não havia nada grandioso, mas algumas percepções como as seguintes:

  • A qualidade do áudio (um microfone adequado) é mais importante que a qualidade do vídeo para aulas síncronas e videoaulas.
  • Os alunos não costumam assistir videoaulas longas em sua integralidade. Vídeos curtos, entre 10-20 minutos, ou mesmo muito curtos, têm mais chances de serem assistidos.
  • É improvável que um material de aula (vídeo, texto etc.) seja estudado a menos que haja um teste de compreensão avaliativo a respeito dele. Atividades avaliativas curtas semanais parecem mais efetivas do que avaliações concentradas menos frequentes.
  • Uniformidade na forma de entrega e organização das atividades de diferentes disciplinas é essencial. Em nosso caso específico, entregamos roteiros semanais que incluíam a lista de disciplinas a serem lecionadas na semana, os horários das atividades síncronas, os materiais de aula e as atividades avaliativas com seus respectivos prazos.
  • O acesso e assiduidade dos alunos em maior vulnerabilidade ou baixo aprendizado é um dos maiores desafios. Em nosso caso, muitos alunos deixaram de comparecer ou realizar as atividades.
  • A cola é frequente e difícil de controlar. Sistemas com sorteio de questões, capazes de gerar atividades diferentes para cada aluno, ajudam, bem como atividades de produção que exijam um material único (produção de texto ou vídeo, por exemplo).

Após um semestre de retorno à modalidade presencial, noto (ou relembro de) alguns pontos:

  • Os docentes precisam empenhar uma grande quantidade de energia em questões marginalmente relacionadas ao aprendizado em sentido estrito: motivação e cobrança de empenho, gerenciamento de inadequação comportamental, em sala e fora dela. No ensino remoto, esse tipo de problema não é visível ao docente.
  • Grande parte dos alunos voltou do ensino remoto com muitas lacunas de aprendizagem e em habilidades básicas, tanto cognitivas quanto de socialização. No aspecto cognitivo, em especial, penso que uma analogia com o exercício físico é adequada: uma pessoa que, estando em uma rotina de exercícios de musculação, ficasse parada por um longo período, voltaria à atividade não mais no estágio de desenvolvimento em que parou; teria regredido.
  • Alguns alunos apresentam dificuldades de interação, especialmente com pares que são diferentes em suas atitudes, valores ou opiniões. A escola presencial oferece um espaço de interação com a diferença que permite exercitar habilidades que fora dali talvez não sejam tão intensamente exercitadas.
  • O uso de celulares está fora do controle dos alunos e dos próprios pais. O equipamento foi útil, apesar dos seus problemas, durante a pandemia, mas a sala de aula é um dos poucos lugares onde se tem chance de proteger um tempo para o ócio criativo, a concentração genuína e o pensamento aprofundado.
  • Minha instituição de trabalho não organizou-se à altura do que este episódio da história da educação e da humanidade exigia: se alguém tivesse ido dormir em 2019 e acordasse em 2022 para ir à escola, perceberia como diferença apenas o uso da máscara. Os currículos, os horários, as ementas e tudo o mais permaneceram tal e qual. Algumas tentativas de resposta estão sendo feitas à medida que os problemas aparecem, mas certamente se poderia ter pensado alternativas que fossem excepcionais em nível próximo aos problemas que a pandemia gerou.

Kant passaria em um concurso público no Brasil?

Este é um desabafo, mais do que um argumento, que me sinto obrigado a fazer na condição de integrante das engrenagens que entendo estarem corroídas. (Os raciocínios estão guardados, caso alguém queira ouví-los, mas no geral é um assunto desconfortável de se discutir aberta e detalhadamente). Duvido que as maiores figuras que deram forma à tradição filosófica que chegou até nós poderiam ser valorizadas nos estágios iniciais de suas carreiras em boa parte das instituições de ensino e pesquisa de nosso país. Kant, Gadamer, Anscombe, Davidson, Nussbaum, após obterem o título de doutor em filosofia, correriam o risco de ficarem pra trás se concorressem com alguém que tivesse decidido completar seu currículo com publicações no jornalzinho da esquina. A burocratização da avaliação acadêmica sacrifica a discriminação pela qualidade e valoriza cegamente a quantidade, às vezes mais e às vezes menos diretamente. Um dos efeitos mais nocivos dessa prática é estimular os mais jovens (ou melhor, os desempregados) a imitarem as mesmas práticas tortas, em um cenário cada vez mais competivo e desafiador. Outro, o mais sério do ponto de vista do investimento público, é que nossas instituições deixam de atingir o potencial que poderiam. Como as revisões institucionais tendem a ser produzidas internamente, é duvidoso que um grupo suficientemente numeroso, dentre aqueles que entraram pelo mesmo caminho aqui criticado, terá o entendimento e a motivação necessários para promover qualquer mudança. É um autoexame que precisa ser feito: é preciso refletir sobre se os parâmetros ora utilizados estão produzindo os resultados que deveriam. Como passo inicial, poderíamos fazer, em cada instituição, a seguinte pergunta: como se sairiam em nossos processos de seleção aqueles que consideramos grandes representantes da profissão, aqueles com quem ocupamos nossas aulas? O que os distinguia antes de terem já produzido aquilo que lhes fez serem agora reconhecidos?

A filosofia na BNCC

Eis um apanhado de passagens onde a filosofia é mencionada na BNCC (Base Nacional Curricular Comum).

Algumas passagens desempenham a função de inserir a filosofia na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas:

“A área de Ciências Humanas, tanto no Ensino Fundamental como no Ensino Médio, define aprendizagens centradas no desenvolvimento das competências de identificação, análise, comparação e interpretação de ideias, pensamentos, fenômenos e processos históricos, geográficos, sociais, econômicos, políticos e culturais. Essas competências permitirão aos estudantes elaborar hipóteses, construir argumentos e atuar no mundo, recorrendo aos conceitos e fundamentos dos componentes da área. No Ensino Médio, com a incorporação da Filosofia e da Sociologia, a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas propõe o aprofundamento e a ampliação da base conceitual e dos modos de construção da argumentação e sistematização do raciocínio, operacionalizados
com base em procedimentos analíticos e interpretativos. Nessa etapa, como os estudantes e suas experiências como jovens cidadãos representam o foco do aprendizado, deve-se estimular uma leitura de mundo sustentada em uma visão crítica e contextualizada da realidade, no domínio conceitual e na elaboração e aplicação de interpretações sobre as relações, os processos e as múltiplas dimensões da existência humana.” (p. 472)

Como consta (p. 476), filosofia faz parte das aprendizagens essenciais do ensino médio.

Sobre a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, como algumas outras, a BNCC faz a “definição
de competências específicas de área e habilidades que lhes correspondem.” (p. 33). O destaque é para o fato de que as competências são definidas para áreas, e não para disciplinas (com a exceção de Língua Portuguesa, que é parte da área de Linguagens e suas Tecnologias, mas tem a definição de habilidades específicas, e para Matemática, que forma sozinha a área de Matemática e suas Tecnologias).

“A BNCC da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – integrada por Filosofia, Geografia, História e Sociologia – propõe a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas no Ensino Fundamental, sempre orientada para uma formação ética. Tal compromisso educativo tem como base as ideias de justiça, solidariedade, autonomia, liberdade de pensamento e de escolha, ou seja, a compreensão e o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos de qualquer natureza.” (561)

A filosofia aparece ainda relacionada ao conceito de “tempo”, que por sua vez aparece no contexto de conteúdos sobre as origens das diversidades sociais e culturais:

“Definir o que seria o tempo é um desafio sobre o qual se debruçaram e se debruçam grandes pensadores de diversas áreas do conhecimento. O tempo é matéria de reflexão na Filosofia, na Física, na Matemática, na Biologia, na História, na Sociologia e em outras áreas do saber.” (p. 563)

A filosofia aparece novamente com os temas “política” e “trabalho”:

“A política está na origem do pensamento filosófico. Na Grécia Antiga, o exercício da argumentação e a discussão sobre os destinos das cidades e suas leis estimularam a retórica e a abstração como práticas necessárias para o debate em torno do bem comum. Esse exercício permitiu ao cidadão da pólis compreender a política como produção humana capaz de favorecer as relações entre pessoas e povos e, ao mesmo tempo, desenvolver a crítica a mecanismos políticos como a demagogia e a manipulação do interesse público. A política, em sua origem grega, foi o instrumento utilizado para combater os autoritarismos, as tiranias, os terrores, as violências e as múltiplas formas de destruição da vida pública.” (p. 567)

“A categoria trabalho, por sua vez, comporta diferentes dimensões – filosófica, econômica, sociológica ou histórica: como virtude; como forma de produzir riqueza, de dominar e de transformar a natureza; como mercadoria; ou como forma de alienação.” (p. 568)

A filosofia é ainda mencionada explicitamente em na habilidade EM13CHS101 e EM13CHS103 da Competência Específica 1, que centra-se em “processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais“:

“(EM13CHS101) Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais.” (p. 572)

“(EM13CHS103) Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas (expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros).” (p. 572)

A filosofia aparece na redação da Competência Específica 5:

“Identificar e combater as diversas formas de injustiça, preconceito e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos.

O exercício de reflexão, que preside a construção do pensamento filosófico, permite aos jovens compreender os fundamentos da ética em diferentes culturas, estimulando o respeito às diferenças (linguísticas, culturais, religiosas, étnico-raciais etc.), à cidadania e aos Direitos Humanos. Ao realizar esse exercício na abordagem de circunstâncias da vida cotidiana, os estudantes podem desnaturalizar condutas, relativizar costumes e perceber a desigualdade, o preconceito e a discriminação presentes em atitudes, gestos e silenciamentos, avaliando as ambiguidades e contradições presentes em políticas públicas tanto de âmbito nacional como internacional.” (p. 577)

Este apanhado de citações não é uma leitura sistemática e exaustiva do lugar da filosofia na BNCC. Antes, trata-se de uma leitura “sintática”, guiada pelas ocorrências da palavra “filosofia” e similares no texto da BNCC. Ainda assim, talvez serva como uma primeira aproximação do lugar planejado para a disciplina no contexto do ensino médio brasileiro: pode-se ver pelos negritos (que, a propósito, não devem ser pensados como exclusividades para o professor de filosofia) que há menção de práticas caras à filosofia (como argumentação, dicussão e análises “críticas”), mas que as temáticas tratadas tendem a se concentrar em aspectos de filosofia prática, não comtemplando de maneira equilibrada o conjunto de temas costumeiramente vinculado à disciplina (a análise dos livros didáticos agora em oferta, elaborados para contemplar a BNCC, também revela que os instrumentos típicos da filosofia no âmbito da argumentação estão em grande medida ausentes.) Além disso, transparece uma expectativa de que a filosofia possa entregar diretivas de uma maneira que pode causar estranheza aos que se acostumaram ao caráter indecidido das discussões filosóficas. Ficam dúvidas sobre se a filosofia pode entregar diretivas sem trair seu caráter de abertura à crítica e discussão. Também se pode questionar sobre que visão sobre a filosofia é possível montar a partir de uma tentativa de reconstruí-la exclusivamente a partir das peças disponibilizadas pela base.

E se uma vacina fosse testada diretamente em toda a população?

Aí teríamos a implementação de uma BNCC ocorrendo ao mesmo tempo em todas as escolas do país, tal como se encaminha neste momento.

Por que testar uma vacina em todo mundo—o que, na prática, equivale a aplicá-la sem teste algum—é problemático? Porque não há como saber, a priori, quais serão os efeitos da intervenção, inclusive se terá (e qual será) a eficácia. Trata-se, obviamente, de uma questão empírica. Por que, então, parece aceitável fazer uma intervenção deste tipo no âmbito da educação? Para saber se a intervenção é boa, deveríamos poder comparar seus efeitos, inclusive em diferentes contextos, e poder compará-los com o modelo atualmente vigente. Obviamente, que efeitos almejamos é uma questão política, me sentido amplo, que diz respeito às nossas ambições. Mas sejam quais forem as pretensões, não é razoável buscá-las sem consultar em alguma medida a realidade.

No âmbito da filosofia, e julgando em parte pelos livros didáticos disponibilizados para escolha que pude consultar até o momento, parece haver uma discrepância bastante grande em relação às possibilidades de abordagem da disciplina usualmente consideradas e o que é oferecido, tanto nos temas quanto no modo. Em um dos exemplares disponíveis, a filosofia parece ser o palco de um desfile de opiniões, sem qualquer respeito ao lugar que a argumentação e a reflexão cuidadosas ocupam no seu exercício—e, portanto, tornando duvidoso que o material possa ajudar no ensino dessas habilidades aos estudantes.

Este é um comentário/desabafo provisório. Ficaria muito agradecido se algum visitante deste blog pudesse compartilhar suas impressões sobre o tema, especialmente comentários que pudessem ajudar a pautar a seleção dos livros atualmente sobre a mesa.

Ronai Rocha entrevistado

Há uma excelente e inspiradora entrevista com o professor Ronai Rocha no Podcast Todavia. Ronai Rocha é professor aposentado do Departamento de Filosofia da Universidade de Santa Maria. Além de relembrar aspectos do funcionamento do departamento e da pesquisa em filosofia a partir da década de 1970, a entrevista aborda temas relacionados ao ensino de filosofia e, de uma maneira especialmente interessante, lança sementes para uma inserção mais ampla da filosofia na cultura brasileira.

Ronai Rocha no Podcast Todavia (YouTube).

Entre outros, Ronai Rocha é autor dos livros Ensino de Filosofia e Currículo, Quando Ninguém Educa e Escola Partida. Os livros (e outros em elaboração) são mencionados na entrevista, mas também foram objeto de outras entrevistas e textos de divulgação nos últimos anos (ver, por exemplo, aqui, aqui, aqui e aqui).

O Podcast Todavia está disponível também no YouTube.