Reformar as práticas de responsabilização sem ceticismo

“Derk Pereboom e Gregg Caruso argumentam que os seres humanos nunca são moralmente responsáveis por suas ações e adotam essa tese como ponto de partida para um projeto cujo fim último é a reforma das práticas de responsabilização, as quais incluem elogios, reprovações e a punição na esfera legal. Este artigo compartilha da preocupação cética de que as práticas de responsabilização atuais podem ser imperfeitas e necessitarem de modificações, mas argumenta que uma busca não-cética dessas modificações é viável e mais promissora. As linhas principais do argumento são desenvolvidas mediante uma avaliação das possibilidades de implementação de uma das mudanças defendidas no interior do projeto cético (a saber, a redução da severidade da punição) à luz de como a psicologia moral humana funciona. Um estudo experimental original (N = 180; participantes oriundos de grupos de Facebook relacionados a universidades brasileiras) pediu aos participantes para recomendar uma sentença para um criminoso fictício depois de considerar alternativas à punição regular que variaram em sua efetividade em prevenir a reincidência. Os resultados sugerem que as pessoas podem se tornar menos punitivas mesmo se continuarem a acreditar na responsabilidade moral e no livre-arbítrio. O artigo também argumenta que é mais provável que a reforma das práticas de responsabilização aconteça sem a aceitação do ceticismo.”

Este é o resumo de meu artigo “Reforming responsibility practices without skepticism” publicado recentemente na Philosophical Psychology. (A versão aceita permanecerá com acesso livre aqui).

As aulas de Daniel Bonevac

Acabo de descobrir o canal de Daniel Bonevac no YouTube. Bonevac é professor de filosofia na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos. A vivacidade, clareza e variedade de assuntos de suas aulas são qualidades raras, que lhes tornam um material atrativo para quem está interessado em materiais a nível de graduação em inglês.

As aulas cobrem os assuntos mais variados, incluindo Ética das Organizações, Filosofia Anaĺítica, Introdução à Filosofia, entre outros. Abaixo incluí como amostra uma aula sobre como Hegel responde a Kant, um tópico que, na minha experiência, é mais fácil contornar do que abordar.

Daniel Bonevac sobre Hegel e Kant

Sobre líderes e ética

“Bandos LPA [i.e. bandos humanos provavelmente similares aos existiram entre 126 mil e 11 mil anos atrás] não têm indivíduos dominantes de tipo alfa. Naqueles casos em que há um líder reconhecível, seu papel—o líder é quase sempre um homem adulto—é apenas o de facilitar e proteger a coesão social, frequentemente sendo um ‘condutor da redistribuição’ de recursos importantes, incluindo alimentos e liberdade (Graeber 2011). Frequentemente o líder é o membro mais pobre do bando e se espera que seja mais generoso, cooperativo e modesto do que os demais, e que julgue brigas e desacordos de modo que sejam resolvidos rapidamente e de uma maneira percebida como justa e adequada pela grande maioria do grupo. Não apenas potenciais tipos-alfa são excluídos da liderança, mas os membros de bandos LPA rapidamente formam coalizões grandes e potencialmente agressivas contra membros agressivos [bullies] que tentem controlar suas vidas e recursos.”

Esta é uma tradução minha de uma passagem do artigo A carne fez a ética (minha tradução grosseira de “Meat made us moral”) de Matteo Mameli, publicado na revista Biology and Philosophy (pp. 919-920).

As aulas de Rolando Almeida

Um dos efeitos que a pandemia de covid-19 produziu no âmbito da educação foi a aceleração da ocupação de espaços digitais por professores das mais variadas áreas do conhecimento e níveis de ensino. Por mais de uma vez ensaiei preparar um compilado dos vários materiais, especialmente em formado de vídeo, que foram produzidos na área de filosofia. Por ainda não ter conseguido levar a cabo a tarefa, divulgo por ora um conjunto de videoaulas de ótima qualidade produzidas por um professor de filosofia português.

Rolando Almeida ensina filosofia no nível secundário (aproximadamente nosso ensino médio) em uma escola pública da Ilha da Madeira, em Portugal, e também mantém um blog dedicado à divulgação e ao ensino da filosofia. Em 2020, ele gravou um conjunto de aulas de filosofia que foram transmitidas pelo canal de TV RTP Madeira. As aulas foram também disponibilizadas no YouTube.

Rolando Almeida na primeira aula de Filosofia da Arte (que inclui também uma revisão inicial sobre argumentação).

Entre as videoaulas disponíveis, há uma sequência de aulas sobre ética (aula 1, aula 2, aula 3, aula 4), sobre filosofia da religião (primeira, segunda, terceira, quarta e quinta) e sobre filosofia da arte (aula 1, aula 2, aula 3, aula 4). Uma lista completa das aulas está disponível nesta página.

As aulas seguem as diretrizes curriculares portuguesas, mas penso que podem contribuir bastante com os estudos de estudantes brasileiros, além de permitirem um benéfico contato com um ambiente cultural e de ensino levemente diferente do nosso.

Colóquio de filosofia da neurociência

Estão abertas as inscrições para ouvintes para o III Colóquio Internacional de Filosofia da Neurociência: Livre-arbítrio, agência e implicações éticas, que ocorrerá online entre 21 e 25 de junho deste ano.

Participarei com uma apresentação [gravação aqui] sobre as diferentes maneiras em que a neurociência poderia acarretar mudanças em nossas práticas de responsabilização, examinadas principalmente quanto à sua plausibilidade dada a psicologia moral humana e o modo como tendemos a responsabilizar uns aos outros. Mas, mais importante do que isso, participarão nomes consagrados da filosofia da neurociência internacional e brasileira!

Adendo: O evento está sendo transmitido também no YouTube. As gravações também ficam disponíveis posteriormente.

Ética normativa em vídeos

Photo by Jon Tyson on Unsplash

Um outro grupo de conteúdos que preparei para atividades remotas de ensino foi a seguinte sequência de vídeos sobre teorias em ética normativa (veja também a série sobre questões de filosofia do Enem). Gosto de pensar que um dos traços da experiência na realização de alguma tarefa é a uniformidade: estes vídeos são o oposto disto (mas quero acreditar que foram melhorando durante o processo).

1. Introdução à filosofia (e ao lugar da ética na filosofia)

2. Deontologia

3. Consequencialismo

4. Ética de Immanuel Kant

5. Ética das virtudes (Aristóteles)

6. Aplicando as teorias e recapitulando

Filosofia no Enem: Seis questões comentadas

Durante o período em que as atividades regulares do IF Farroupilha estiveram suspensas, tive a oportunidade de participar de um projeto voltado à preparação dos alunos para o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Participar do projeto me permitiu fazer algumas coisas que nem sempre são viáveis durante as atividades regulares de ensino, como aumentar a familiaridade com a prova e encarar maneiras de apresentar certos temas da filosofia que diferem da maneira como eu próprio faria em uma aula regular.

Nessas atividades busquei oferecer aos alunos estratégias de solução para as questões que aparecem no exame, mas principalmente indicar os conteúdos que subjazem cada questão. Um processo adicional nesse trabalho foi testar diferentes formatos de vídeo e aprimorar sua qualidade, dentro de cronogramas que nem sempre permitiram muito ensaio prévio. O resultado final fica registrado abaixo, na torcida de que possa ajudar outros alunos na sua preparação.

1. Enem 2012.2 — Questão 73

“Pode-se viver sem ciência, pode-se adotar crenças sem querer justificá-las racionalmente, pode-se desprezar as evidências empíricas. No entanto, depois de Platão e Aristóteles, nenhum homem honesto pode ignorar que uma outra atitude intelectual foi experimentada, a de adotar crenças com base em razões e evidências e questionar tudo o mais a fim de descobrir seu sentido último.” (ZINGANO, M. Platão e Aristóteles: o fascínio da filosofia. São Paulo: Odysseus, 2002)

Platão e Aristóteles marcaram profundamente a formação do pensamento Ocidental. No texto, é ressaltado importante aspecto filosófico de ambos os autores que, em linhas gerais, refere-se à:

A) adoção da experiência do senso comum como critério de verdade.
B) incapacidade de a razão confirmar o conhecimento resultante de evidências empíricas.
C) pretensão de a experiência legitimar por si mesma a verdade.
D) defesa de que a honestidade condiciona a possibilidade de se pensar a verdade.
E) compreensão de que a verdade deve ser justificada racionalmente.

Comentário sobre a questão:

2. Enem 2012.1 — Questão 70

TEXTO I
“Experimentei algumas vezes que os sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar
inteiramente em quem já nos enganou uma vez.” (DESCARTES, R. Meditações Metafísicas.
São Paulo: Abril Cultural, 1979)

TEXTO II
“Sempre que alimentarmos alguma suspeita de que uma ideia esteja sendo empregada sem
nenhum significado, precisaremos apenas indagar: de que impressão deriva esta suposta
ideia? E se for impossível atribuir-lhe qualquer impressão sensorial, isso servirá para confirmar
nossa suspeita.” (HUME, D. Uma investigação sobre o entendimento. São Paulo: Unesp, 2004 – adaptado)

Nos textos, ambos os autores se posicionam sobre a natureza do conhecimento humano. A
comparação dos excertos permite assumir que Descartes e Hume:

A) defendem os sentidos como critério originário para considerar um conhecimento legítimo.
B) entendem que é desnecessário suspeitar do significado de uma ideia na reflexão filosófica e crítica.
C) são legítimos representantes do criticismo quanto à gênese do conhecimento.
D) concordam que conhecimento humano é impossível em relação às ideias e aos sentidos.
E) atribuem diferentes lugares ao papel dos sentidos no processo de obtenção do conhecimento.

Comentário sobre a questão:

3. Enem 2019 — Questão 51 (caderno azul)

“Em sentido geral e fundamental, Direito é a técnica da coexistência humana, isto é, a técnica voltada a tornar possível a coexistência dos homens. Como técnica, o Direito se concretiza em um conjunto de regras (que, nesse caso, são leis ou normas); e tais regras têm por objeto o comportamento intersubjetivo, isto é, o comportamento recíproco dos homens entre si.” (ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.)

O sentido geral e fundamental do Direito, conforme foi destacado, refere-se à

A. aplicação de códigos legais.
B. regulação do convívio social.
C. legitimação de decisões políticas.
D. mediação de conflitos econômicos.
E. representação da autoridade constituída.

Comentário sobre a questão:

4. ENEM 2019 — Questão 78 (caderno azul)

TEXTO I

“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre crescentes: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.” KANT, I. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, s/d (adaptado).

TEXTO II

“Duas coisas admiro: a dura lei cobrindo-me e o estrelado céu dentro de mim.” FONTELA, O. Kant (relido). In: Poesia completa. São Paulo: Hedra, 2015.

A releitura realizada pela poeta inverte as seguintes ideias centrais do pensamento kantiano:

A. Possibilidade da liberdade e obrigação da ação.
B. Aprioridade do juízo e importância da natureza.
C. Necessidade da boa vontade e crítica da metafísica.
D. Prescindibilidade do empírico e autoridade da razão.
E. Interioridade da norma e fenomenalidade do mundo.

Comentário sobre a questão:

5. Enem 2019 — Questão 67 (caderno azul)

TEXTO I

“Considero apropriado deter-me algum tempo na contemplação deste Deus todo perfeito, ponderar totalmente à vontade seus maravilhosos atributos, considerar, admirar e adorar a incomparável beleza dessa imensa luz.” DESCARTES, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

TEXTO II

“Qual será a forma mais razoável de entender como é o mundo? Existirá alguma boa razão para acreditar que o mundo foi criado por uma divindade todo-poderosa? Não podemos dizer que a crença em Deus é ‘apenas’ uma questão de fé.” RACHELS, J. Problemas da filosofia. Lisboa: Gradiva, 2009.

Os textos abordam um questionamento da construção da modernidade que defende um modelo

A. centrado na razão humana.
B baseado na explicação mitológica.
C fundamentado na ordenação imanentista.
D focado na legitimação contratualista.
E configurado na percepção etnocêntrica.

Comentário sobre a questão:

6. Enem 2019 — Questão 64 (caderno azul):

‘A lenda diz que, em um belo dia ensolarado, Newton estava relaxando sob uma macieira. Pássaros gorjeavam em suas orelhas. Havia uma brisa gentil. Ele cochilou por alguns minutos. De repente, uma maçã caiu sobre a sua cabeça e ele acordou com um susto. Olhou para cima. “Com certeza um pássaro ou um esquilo derrubou a maçã da árvore”, supôs. Mas não havia pássaros ou esquilos na árvore por perto. Ele, então, pensou: “Apenas alguns minutos antes, a maçã estava pendurada na árvore. Nenhuma força externa fez ela cair. Deve haver alguma força subjacente que causa a queda das coisas para a terra’. The English Enlightenment, p. 1-3, apud MARTINS, R. A. A maçã de Newton: história, lendas e tolices. In: SILVA, C. C. (org.). Estudos de história e filosofia das ciências: subsídios para aplicação no ensino. São Paulo: Livraria da Física, 2006. p. 169 (adaptado).

Em contraponto a uma interpretação idealizada, o texto aponta para a seguinte dimensão fundamental da ciência moderna:

A. Falsificação de teses.
B. Negação da observação.
C. Proposição de hipóteses.
D. Contemplação da natureza.
E. Universalização de conclusões.

Comentário sobre a questão:

Kant sobre a liberdade…

…e sobre leis naturais e morais, e a distinção entre fenômenos e coisas em si: Uma brevíssima introdução à filosofia de Kant!

Pintura feita por Johann Gottlieb Becker, 1768

Kant nasceu em 1724 em uma cidade que na época fazia parte da Alemanha e se chamava Königsberg. Ele é classificado como um filósofo alemão do século XVIII e é considerado um dos filósofos mais importantes de todos os tempos. Este texto oferece uma breve introdução a alguns aspectos centrais da filosofia de Kant, com foco na maneira como entende o conceito de liberdade e a distinção entre fenômenos e coisas em si.

Ao contrário do que costuma acontecer nos dias de hoje, Kant produziu um sistema filosófico, o que quer dizer que abordou vários temas de interesse filosófico de maneira integrada. Dois desses temas são a ética, por um lado, e a metafísica e a epistemologia, por outro. Por ética, podemos entender a área da filosofia preocupada com valores, como o que torna uma ação certa ou errada. E podemos entender a metafísica e a epistemologia como áreas da filosofia preocupadas com o conhecimento humano e com como podemos conhecer os aspectos mais fundamentais da realidade.

Um ponto de entrada para a filosofia kantiana é um conceito situado na fronteira onde a ética e a metafísica se encontram. Trata-se do conceito de liberdade. Kant caracterizou a liberdade da vontade (ou capacidade de livre escolha) de duas maneiras relacionadas. A primeira é uma caracterização negativa. Kant diz:

“a vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhas que a determinem” (FMC, 3ª seção, p. 93).

Em outras palavras, os seres racionais têm liberdade quando suas escolhas não são determinadas por causas que residam fora de suas capacidades racionais. A caracterização positiva, por outro lado, pergunta: “que outra coisa pode ser […] a liberdade, senão autonomia, i. é a propriedade da vontade de ser lei para si mesma?” (FMC, 3ª seção, p. 94).

Nesta caracterização positiva, a liberdade é entendida como auto-nomia, que podemos entender como a capacidade da vontade de auto-regrar-se, isto é, a capacidade de dar leis para si mesma. Essas leis, na teoria ética Kantiana, são as formulações do imperativo categórico. Não entraremos em detalhes desta teoria aqui, mas um exemplo de lei que a razão poderia dar a si mesma seria o seguinte: Aja sempre segundo regras que você poderia querer que fossem seguidas por todos os agentes. Se a razão humana pode fazer com que ela mesma siga essa lei, então, segundo Kant, ela é livre no sentido positivo.

As caracterizações da liberdade recém apresentadas, e especialmente a caracterização negativa, geram um problema para Kant. Kant acreditava que todos os fenômenos são determinados por causas anteriores que lhes são externas. Assim, se todos os eventos são o produto de causas determinantes anteriores, não seriam determinadas também as ações e decisões humanas, ao contrário do que exige a liberdade em sentido negativo? Nem todo mundo acredita que a determinação causal exclui a liberdade. Mas Kant defendeu que não temos controle sobre o que aconteceu no passado e que, se eventos passados determinam minhas decisões, assim como determinam os demais eventos, não teríamos liberdade e que, como consequência, a ética como um todo não faria sentido (ver por exemplo, o conceito de responsabilidade moral).

A solução proposta por Kant faz parte de sua metafísica e epistemologia, que fazem parte de seu projeto mais amplo que ficou conhecido como filosofia crítica. A solução proposta para o problema da liberdade consiste em fazer uma distinção entre coisas tal como aparecem para nós pelos sentidos e coisas pensadas em si mesmas. A seguinte passagem faz uso desta distinção:

“O conceito de causalidade enquanto necessidade natural, à diferença da causalidade enquanto liberdade, concerne somente à existência das coisas na medida em que ela é determinável no tempo, por conseguinte, das coisas como fenômenos em oposição à causalidade delas como coisas em si mesmas.” (CRPr. p. 153 [5:94]).

Em outras palavras, Kant diz que a tese de que todo evento é determinado por causas anteriores aplica-se somente às coisas entendidas como fenômenos, isto é, como objetos situados no espaço e tempo que sejam objeto do conhecimento humano. Isso acontece porque é uma lei de nossa própria capacidade de conhecer as coisas mediante os sentidos que as entendamos como encadeadas segundo leis causais.

O conceito de liberdade, por outro lado, aplica-se de outra maneira:

“se ainda se quiser salvá-la [a liberdade], não resta outro caminho senão atribuir a existência de uma coisa … [e] também a causalidade segundo a lei da necessidade natural, simplesmente ao fenômeno, porém atribuir a liberdade ao mesmo ente enquanto coisa em si mesma.” (CRPr. p. 154 [5:95]).

Assim, o sistema filosófico de Kant acaba por fazer uma distinção entre o âmbito das leis da natureza e o âmbito das leis morais. Por um lado, quando buscamos conhecer o mundo, inevitavelmente entendemos os objetos como encadeados causalmente segundo leis naturais, onde eventos anteriores determinam os eventos seguintes. Por outro lado, no âmbito da ética, a razão pensa-se como livre de qualquer determinação externa e como capaz de determinar-se segundo leis morais que dá a si mesma. Não há conflito aqui, segundo Kant, porque as leis da natureza aplicam-se apenas às coisas como fenômenos, ou seja, como objetos que podem ser conhecidos mediante os sentidos. Por outro lado, no âmbito da ética, a razão pensa-se não como um fenômeno, mas como coisa em si mesma ou, como Kant falou, como númeno. As coisas, como númeno, não são objeto de conhecimento mediante os sentidos, mas apenas objetos sobre os quais a mente humana pode pensar.

Como nota final, o projeto kantiano ficou conhecido como filosofia “crítica”. A palavra “crítica” descreve aqui o fato de que Kant buscou especificar os limites do conhecimento humano, especialmente no que diz respeito a temas tradicionais da filosofia como Deus, a alma e a liberdade, antes de fazer mais uma tentativa de conhecê-los. Sobre esses temas, entendidos como coisas em si mesmas, Kant defendeu que não podemos obter propriamente nenhum conhecimento, embora possamos pensá-los no âmbito da filosofia prática, como exemplifica o uso do conceito de liberdade na ética, considerado aqui.

Este texto é uma adaptação de parte do conteúdo deste vídeo no YouTube em que resolvo uma questão sobre a filosofia kantiana extraída da edição de 2019 do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.

Referências:
Kant, I. Fundamentação da metafísica dos costumes [FMC]. Tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Atlântida, 1960.
Kant, I. Crítica da razão prática [CRPr]. Tradução de Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

Ética da saúde pública

Podemos entender a ética da saúde pública como uma versão aplicada da ética normativa. Seu propósito é pensar sobre os desafios éticos envolvidos na justificação de intervenções que almejem promover a saúde da população. O texto que segue é baseado no verbete Public Health Ethics, escrito por Ruth Faden (fundadora do Instituto Berman de Bioética da Universidade de Johns Hopkins) e Sirine Shebaya, publicado na Stanford Encyclopedia of Philosophy. O texto consiste, em grande medida, em uma tradução comentada de alguns fragmentos do verbete.

Foto por kian zhang no Unsplash

O que é a ética da saúde pública?

“A ética da saúde pública lida principalmente com os fundamentos éticos e a justificação da saúde pública, os vários desafios éticos produzidos por recursos limitados para promover a saúde e por tensões, percebidas ou reais, entre benefícios coletivos e liberdade individual” (introdução). Em outras palavras, as ações realizadas buscando promover a saúde pública—por exemplo, uma campanha de vacinação, medidas para combater a proliferação de insetos transmissores de doenças ou restrições à circulação de pessoas e atividades comerciais para conter uma pandemia—poderão por vezes soar como questionáveis e exigirão uma justificação. Essa justificação é o amparo ético ou moral para a ação e pode buscar avaliar como recursos escassos devem ser empenhados ou gerenciar o custo que as ações realizadas podem ter sobre a liberdade individual.

Principais problemas e abordagens

O texto discute duas abordagens principais sobre os objetivos e desafios da ética da saúde pública.

Concepção consequencialista: “Uma concepção sobre a ética da saúde pública trata os fundamentos morais da saúde pública como um imperativo para se maximizar o bem-estar [welfare] e, assim, vê a saúde como um componente do bem-estar (Powers & Faden 2006). Esta concepção apresenta o desafio ético central da saúde pública como sendo equilibrar as liberdades individuais com a promoção de bons resultados na saúde. Considere, por exemplo, como as liberdades são tratadas nas políticas governamentais que adicionam flúor à água potável ou que obrigam pessoas com tuberculose infecciosa ativa a serem tratadas.” (introdução)

Segundo a abordagem acima, a ética da saúde pública funcionaria nos moldes da ética consequencialista (sobre o consequencialismo, você pode ver este vídeo no YouTube), justificando suas ações em nome da promoção de certos bens (neste caso, a saúde, como parte do bem-estar geral). Os desafios, nesta abordagem, são similares aos desafios do consequencialismo: por vezes os meios mais eficazes para promover o bem podem ser questionáveis. O exemplo comum na discussão do consequencialismo é sacrificar uma vida de modo a salvar várias outras; o exemplo na ética da saúde pública é por vezes sacrificar a liberdade de um indivíduo em nome da saúde do grupo. A título de exemplo, há registro de casos em que um paciente é obrigado judicialmente a aderir a um tratamento para tuberculose e, neste momento, vemos constantemente a tensão entre políticas pública para controle da pandemia e interesses na livre circulação e comércio.

Concepção baseada na justiça social: “Uma concepção alternativa sobre a ética da saúde pública caracteriza seu fundamento moral como a justiça social. Ainda que equilibrar as liberdades individuais com a promoção de bens sociais seja uma das preocupações, ela insere-se em um compromisso mais amplo para assegurar um nível suficiente de saúde para todos e reduzir desigualdades injustas (Powers & Faden, 2006). Assim, uma preocupação adicional é o equilíbrio deste compromisso com o imperativo para maximizar bons resultados agregados ou coletivos na saúde. Entendida desta maneira, a ética da saúde pública tem conexões éticas profundas com questões mais amplas sobre justiça social, pobreza e desfavorecimento sistemático.” (introdução)

Em síntese, portanto, pode-se formular a tarefa principal da ética da saúde pública ou como a busca de um equilíbrio entre os conflitos potenciais entre a promoção da saúde coletiva e as liberdades individuais ou como a busca de conciliação entre a promoção da saúde coletiva e a redução de desigualdades sociais injustas.

Tipos de justificação

O restante do texto descreve alguns princípios a que se pode recorrer quando se busca justificar uma política ou prática que busca promover a saúde coletiva. São também descritas situações específicas em que é mais adequado recorrer a cada uma delas.

Benefício global: por esta via, salienta-se o fato de que as intervenções de saúde, tomadas como um todo, nos permitem alcançar benefícios que não alcançaríamos de outro modo, ainda que algumas intervenções possam não beneficiar diretamente algum indivíduo específico. É crucial, sob este aspecto, que haja regulação para manter as intervenções dentro de limites aceitáveis, mas esses limites precisam ser formulados a partir de outras fontes de justificação, como as listadas abaixo.

Ação coletiva e eficiência: sob este aspecto, a saúde pública ajuda a coordenar e tornar eficiente o comportamento coletivo. “Se uma pessoa (ou, pelo menos, um número suficiente delas) decide passar pelo sinal vermelho e parar quando o sinal está verde, então não importa que todos os outros estejam seguindo as regras: esta pessoa atrapalhará o bom funcionamento do sistema, com resultados potencialmente perigosos” (seção 2.2). De modo similar, se algumas pessoas decidem não seguir algumas regras de saúde (pense, por exemplo, no controle da proliferação de algumas espécies de mosquitos), isso pode prejudicar o acesso a boas condições de saúde ainda que a maioria das outras pessoas esteja fazendo a sua parte.

Equidade na distribuição do ônus: a tese principal aqui é que o ônus (os custos) envolvidos na promoção da saúde devem ser aproximadamente equivalentes para todos os envolvidos. Recorre-se a esta tese para justificar uma distribuição desigual dos custos das intervenções: se um grupo de indivíduos tem maiores dificuldades diante de uma situação, propõe-se que uma intervenção em nome da saúde possa exigir mais de outros indivíduos. Um exemplo é “a política de imunização anual contra gripe do Japão, entre 1962 e 1994, onde as crianças foram imunizadas contra a gripe explicitamente de modo a proteger os idosos, para os quais há maiores chances de a gripe ser fatal e a imunização tem mais chances de ser custosa” (seção 2.3). Neste caso, portanto, a política de saúde aplicava uma exigência maior sobre um grupo (crianças) em função das dificuldades maiores que outro grupo enfrentava (idosos) justificando-a com base na tese de que os custos totais (frutos da intervenção de saúde e outras condições prévias) deveriam ser aproximadamente os mesmos.

O princípio do dano: este princípio é bastante conhecido e deriva do trabalho do filósofo John Stuart Mill no livro Sobre a liberdade. O princípio diz que “a única justificação para interferir na liberdade de um indivíduo, contra a sua vontade, é prevenir o dano a outrem. Recorre-se ao princípio do dano para justificar várias intervenções para o controle de doenças infecciosas, incluindo quarentena, isolamento e tratamento compulsório” (seção 2.4).

Paternalismo: a ideia aqui é que se pode justificar uma intervenção que afete uma pessoa contra a sua vontade para promover o que é melhor para ela. É um princípio controverso. Uma versão mais branda diz que se pode justificar intervenções contra a vontade de uma pessoa em nome de seu bem-estar apenas em algumas circunstâncias, como se sua escolha for “formada sob condições que comprometam significativamente sua autonomia ou voluntariedade, tais como comprometimento cognitivo ou imaturidade e, em casos bastante limitados, ignorância ou crenças falsas” (seção 2.5).

Fonte: Faden, Ruth and Shebaya, Sirine, “Public Health Ethics”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/publichealth-ethics/>.

Yuval Harari sobre a natureza humana

no livro Sapiens – Uma breve história da humanidade (Tradução de Janaína Marcoantonio, L&PM, 2015):

“Isso é essencial para entender nossa história e nossa psicologia. A posição do gênero Homo na cadeia alimentar era, até muito pouco tempo atrás, solidamente intermediária. Durante milhões de anos, os humanos caçaram criaturas menores e coletaram o que podiam, ao passo que eram caçados por predadores maiores. Somente há 400 mil anos que várias espécies de homem começaram a caçar animais grandes de maneira regular, e só nos últimos 100 mil anos – com a ascensão do Homo sapiens – esse homem saltou para o topo da cadeia alimentar.”

“Esse salto espetacular do meio para o topo teve enormes consequências. Outros animais no topo da pirâmide, como os leões e os tubarões, evoluíram para essa posição gradualmente, ao longo de milhões de anos. Isso permitiu que o ecossistema desenvolvesse formas de compensação e equilíbrio que impediam que leões e tubarões causassem destruição em excesso. À medida que os leões se tornavam mais ferozes, a evolução fez as gazelas correrem mais rápido, as hienas cooperarem melhor, e os rinocerontes serem mais mal-humorados. Diferentemente, a humanidade ascendeu ao topo tão rapidamente que o ecossistema não teve tempo de se ajustar. Além disso, os próprios humanos não conseguiram se ajustar. A maior parte dos grandes predadores do planeta são criaturas grandiosas. Milhões de anos de supremacia os encheram de confiança em si mesmos. O sapiens, diferentemente, está mais para um ditador de uma república de bananas. Tendo sido até tão pouco tempo atrás um dos oprimidos das savanas, somos tomados por medos e ansiedades quanto à nossa posição, o que nos torna duplamente cruéis e perigosos. Muitas calamidades históricas, de guerras mortais a catástrofes ecológicas, resultaram desse salto apressado.”