Vida teórica e tempo livre

“Referindo-se à independência das necessidades e ao tempo livre (schōle) como valores e como critérios para escolher o tipo de vida ao qual dedicar-se, o que Aristóteles estava fazedo era conectar o ideal da vida teórica a tendências bem conhecidas na moralidade popular grega, transcendendo as oposições platônicas entre filosofia e senso comum.” (p. 74)

“A primeira condição necessária para a theōria, a posse moderada de bens e liberar-se das necessidades, assim, constitui a base da segunda condição necessária, schōle…” (p. 74)

“De acordo com Aristóteles, schōle é uma condição necessária para o pensamento a partir de um outro ponto de vista também; ela distingue a reflexão filosófica do debate sofístico, no qual os debatedores batalham contra seus adversários de modo a ganhar e são movidos pela necessidade de autoafirmação. O que é necessário para se alcançar a verdade, ao contrário, é a reflexão tranquila.” (p. 75).

As citações são traduções minhas a partir do livro Aristotle: his life and school, de Carlo Natali (Princeton University Press, 2013). Além de darem uma ideia sobre o tipo de vida e investigação almejado por Aristóteles, essas passagens nos lembram da origem da palavra ‘escola’ e da importância da disponibilidade de certo tipo de tempo livre na atividade investigativa—uma condição que tem relativa fragilidade em nossas instituições de ensino e pesquisa.

Fósseis gaúchos

Parece que o fóssil de mamífero mais antigo do mundo foi encontrado em Faxinal do Soturno, no Rio Grande do Sul. O Brasilodon quadrangularis, de 20 cm, viveu há 225 milhões de anos. A julgar por outras tantas descobertas do tipo realizadas por aqui, parece que uma das vocações de nosso estado pode bem ser a paleontologia.

Colóquio de filosofia da neurociência

Estão abertas as inscrições para ouvintes para o III Colóquio Internacional de Filosofia da Neurociência: Livre-arbítrio, agência e implicações éticas, que ocorrerá online entre 21 e 25 de junho deste ano.

Participarei com uma apresentação [gravação aqui] sobre as diferentes maneiras em que a neurociência poderia acarretar mudanças em nossas práticas de responsabilização, examinadas principalmente quanto à sua plausibilidade dada a psicologia moral humana e o modo como tendemos a responsabilizar uns aos outros. Mas, mais importante do que isso, participarão nomes consagrados da filosofia da neurociência internacional e brasileira!

Adendo: O evento está sendo transmitido também no YouTube. As gravações também ficam disponíveis posteriormente.

Educadores se importam com a ciência?

Minha experiência no interior de uma instituição de ensino tem me feito acreditar cada vez mais na verdade da passagem que traduzo abaixo—o que é paradoxal, visto que uma das tarefas principais da escola é justamente levar uma seleção do conhecimento científico acumulado pela humanidade às novas gerações:

“A conexão entre indícios [evidence] e prática na educação está em grande contraste com a que há, por exemplo, na medicina, onde os medicamentos e tratamentos mais variados que provaram, em experimentos rigorosos, que podem curar ou prevenir doenças são geralmente adotados em grande escala pelos profissionais da área. As rápidas e bem sucedidas avaliações de vacinas para Covid-19 realizadas recentemente estão em alta no noticiário neste momento, mas dúzias de novas drogas e outros tratamentos são validados todos os anos e são então adotados amplamente. É certo que se investe muito mais dinheiro no processo de transferência dos indícios para a prática na medicina do que na educação, mas mesmo quando programas educacionais se mostram efetivos em experimentos controlados [randomized experiments] como os que são exigidos na medicina, esses programas raramente são usados em larga escala. Além disso, passar das evidências científicas para a prática é comum em muitas outras áreas, como a agricultura e a tecnologia. Mas não na educação.”

A citação é da postagem ProvenTutoring.org: Getting Proven Tutoring Programs Into Widespread Practice, escrita por Robert Slavin. Uma maneira adicional de pensar no que ela traz para reflexão é esta: se não aceitamos, em geral, tratamentos que não foram testados em decisões sobre a saúde, por que é mais fácil fazê-los no âmbito das decisões de estado, institucionais e docentes no âmbito da educação?

O que é uma boa resposta à pandemia? Uma reflexão filosófica

A pandemia de covid-19 abala o mundo neste momento e apresenta uma ameaça à saúde e à vida. O desafio de enfrentar a pandemia recai de maneira mais pesada sobre profissionais da saúde e governos. Mas há uma questão central sobre essa situação que não é propriamente científica e que tem uma dimensão filosófica: Em que consiste uma boa resposta à pandemia? Com base em que aspectos podemos dizer se uma cidade, um estado ou um país respondeu bem à pandemia (ou melhor do que outros)?

Como é comum com perguntas filosóficas, essas perguntas não podem ser diretamente respondidas a partir da investigação empírica ou da observação dos fatos. E, como também é comum com perguntas filosóficas, todos nós temos opiniões (ainda que raramente articuladas ou verbalizadas) sobre como respondê-las e uma direção geral da resposta pode até ter um ar de trivialidade: responder bem à pandemia tem de envolver minimizar o número de mortes que ela produzirá. Essa intuição genérica não vem da observação dos fatos, mas dos nossos valores. E ela aponta na direção correta. A seguir, busco articular esse núcleo quase evidente sobre o que é uma boa resposta à pandemia, esboçar alguns complicadores possíveis e indicar a relevância dessa reflexão para o que é mais urgente neste momento: as medidas que são efetivamente adotadas para alcançar o melhor.

Um dos aspectos mais visados sobre a pandemia é número absoluto de mortes e casos em diferentes regiões. Neste momento, o Brasil tem em torno de 7 mil mortes por covid-19, os Estados Unidos têm quase 70 mil mortes e o mundo como um todo já conta com mais de 250 mil mortes. Mas o número absoluto de mortes não permite avaliar quão bem uma região está respondendo à pandemia. Diferentes regiões têm populações de diferentes tamanhos. Assim, é esperável que haja mais mortes em um país com 200 milhões de habitantes do que, por exemplo, em um país com 20 milhões de habitantes. Uma alternativa, então, é considerar a taxa de mortes por número total de habitantes, por exemplo, o número total de mortes por milhão de habitantes. (Note-se que essa taxa difere da taxa de mortos por número de infectados ou casos confirmados, que são mais sensíveis a variações em função do número de testes realizados, por exemplo).

Mortes totais por milhão de habitantes em vários países do mundo (em 05/05/2020, fonte)

A taxa de mortes por milhões de habitantes (talvez com algumas qualificações) me parece o aspecto mais importante para avaliar, comparativamente, quão bem uma região respondeu à pandemia. No entanto, ela não é tão útil agora. Quando chegarmos em 2022, por exemplo, talvez queiramos comparar como diferentes países ou estados responderam à pandemia e olharemos para o número de mortes por milhões de habitantes em cada um deles. Mas essa comparação não pode ser feita agora, pois o início dos contágios se deu em momentos diferentes em diferentes regiões e, por isso, algumas regiões terão taxas mais altas do que outras simplesmente porque já estão em um estágio mais avançado da propagação da doença. Para contornar mais esta dificuldade, uma alternativa é comparar as taxas de mortes por milhão de habitantes a partir de um determinado estágio da propagação da doença (por exemplo, a data da primeira morte ou do primeiro caso confirmado). Esse, então, parece ser um indicador crucial para avaliarmos o momento presente.

Registro do número de mortes por milhão de habitantes no Rio Grande do Sul e regiões vizinhas com dados alinhados a partir do registro da primeira mote em 04/05/2020 (fonte)

Alguns complicadores. Um refinamento adicional que a taxa de mortes por milhão de habitantes, ajustada por estágio da doença, pode precisar deriva do fato de que a covid-19 tem severidade diferente em diferentes setores da população. Um dos fatos mais considerados é que a fatalidade é muito mais provável em idosos do que em jovens. Como consequência, um país com uma proporção de idosos maior do que outro pode ter respondido melhor à pandemia ainda que ambos tenham, ao final dela, taxas similares de mortes por milhão de habitantes.

Número de casos confirmados e de mortes no Rio Grande do Sul de acordo com a faixa etária (em 05/05/2020, fonte)

Além da taxa de mortes, há outros fatores negativos produzidos pela pandemia que também podem ser levados em consideração em uma avaliação das respostas empreendidas por diferentes países ou estados. Além de levar vidas, a pandemia produz outras formas de sofrimento que também podem ser levadas em conta. Suponhamos, por exemplo, que ao fim da pandemia dois países tenham taxas idênticas de mortes por milhões de habitantes, mas que, no primeiro deles, muitas pessoas morreram desassistidas, por exemplo, sem ter acesso a um respirador artificial ou a medicamentos de que necessitavam. Nessa situação, parece razoável dizer que o primeiro país respondeu pior à pandemia do que o segundo. Aspectos adicionais dirão respeito ao impacto da resposta à pandemia sobre o futuro, por exemplo, sobre a qualidade de vida da população dali em diante. Penso que esse último aspecto seja, em alguma medida secundário, visto que a qualidade da vida futura só é importante na medida em que consideramos importante a continuação e qualidade da presente. Se não for uma prioridade preservar as vidas de agora, não faz sentido uma preocupação com a qualidade da vida futura.

Implicações. No início da Ética a Nicômaco, Aristóteles diz que conhecer o que é mais importante para uma vida humana (algo que ele chamou de sumo bem) teria grande influência sobre como vivemos. “Semelhantes a arqueiros que têm um alvo certo para a sua pontaria”, disse ele, “não alcançaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcançar?” (Abril Cultural, 1973). Saber o que é uma boa resposta à pandemia poderia igualmente ter impacto sobre como respondemos a ela. Se as considerações apresentadas até aqui são corretas, deveriam ter implicações em pelo menos dois setores. Um deles diz respeito ao tipo de informação que gostaríamos de acessar e produzir. Os canais oficiais de informação têm oferecido diariamente relatórios sobre o número de casos confirmados e de mortes. E os veículos de comunicação têm basicamente repetido essa informação (ver um exemplo). Mas essa informação bruta não é a mais relevante. Precisamos saber como a taxa de mortes por número de habitantes têm variado (talvez comparativamente a outras regiões) em cada estágio da propagação da doença (por exemplo, desde um certo número de dias desde o primeiro óbito). (Note-se que isto não é tudo que esperamos da mídia; esperamos também orientação sobre as melhores práticas individuais, fiscalização das autoridades, entre outros aspectos, que não estão sob discussão aqui).

Uma segunda implicação, e mais séria, diz respeito à qualidade dos dados brutos que são produzidos. Crucialmente, é preciso haver uma contagem confiável e padronizada do número de mortes resultantes da covid-19. Diferentes países adotaram critérios diferentes para contar as mortes e em alguns casos houve mudança de critérios dentro de um único país. Só mortes com teste positivo são contadas? Como são consideradas as mortes fora de um hospital ou quando o paciente tem outras doenças simultâneas? Qual é o tamanho da subnotificação? Obviamente, as condições impostas pela pandemia limitam o que se pode fazer a cada momento, mas mesmo nessas condições é relevante pensar com precisão sobre o que desejaríamos alcançar.

Links filosóficos, mas nem tanto – 27/4/19

  • O ministro da economia, Abraham Weintraub, anunciou em vídeo no Facebook, a disposição do governo para reduzir o investimento público em cursos superiores de filosofia e sociologia. Como argumento, o ministro afirmou que essas áreas do conhecimento não geram retorno para a sociedade, que as escolas de ensino médio deveriam priorizar o ensino de português, matemática e de profissões, e que o ensino superior deveria priorizar áreas como engenharias e medicina.
  • Em resposta, Sabine Righetti e Nina Ranieri argumentam, na Folha, que a proposta é equivocada e fere a autonomia garantida por lei às universidades públicas. Argumentaram também que áreas das ciências sociais e humanas têm contribuições importantes a oferecer à sociedade brasileira no tocante a problemas sociais graves, como a violência contra as mulheres.
  • A Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia também repudiou a proposta.
  • Ronai Rocha lembrou que não é a primeira vez que as duas disciplinas aparecem na mira de figuras políticas importantes.
  • A título de recordação, novamente na contramão das afirmações do ministro, a NASA (Agência Espacial Norte-Americana) decidiu, no ano passado, financiar um projeto de pesquisa, coordenado por filósofos, destinado a entender e promover a segurança na engenharia espacial.
  • E uma pesquisa realizada na Inglaterra em 2016 sugeriu que crianças que tiveram aulas de filosofia melhoraram seu desempenho em matemática e linguagens.

Crime e violência: Dados, causas e prevenção

Durante meu trabalho com questões relacionadas à responsabilidade moral e à punição, entrei em contato com uma vasta literatura sobre as causas e a prevenção do crime e da violência. Esta postagem busca compartilhar uma parte dessa literatura de modo a facilitar o estudo deste tema que, além de relevante por si só, promete estar em alta neste ano eleitoral.

1. Alguns dados sobre o Brasil

Para se entender e prevenir o crime, é preciso que se mantenha um registro preciso e completo sobre sua ocorrência. Por razões variadas, nem sempre é fácil encontrar esse tipo de registro. Os materiais abaixo são relatórios que reúnem uma parcela das informações disponíveis sobre o Brasil.

1.1 Atlas da violência (Ipea e FBSP, 2018)

Este documento apresenta dados sobre homicídios no Brasil. Segundo o documento, a taxa de homicídios brasileira foi de pouco mais de 30 homicídios por 100 mil habitantes em 2016 (taxa que era de menos de 27 em 2006). Para facilitar a comparação, seguem algumas outras taxas de homicídios por 100 mil habitantes disponíveis no documento:

  • Brasil: 30 (em 2016)
  • Estimativa mundial: entre 6 e 9 (de 2007 a 2012)
  • Américas (todas): entre 14 e 16 (2007-2012)
  • América do Sul: cerca de 22 (2007-2012)
  • América do Norte: 5
  • Europa e Oceania: menos de 2

Dados da OMS sobre homicídios no mundo e nos diferentes continentes (2000 a 2013)

Como se pode inferir desses dados, a taxa de homicídios brasileira é muito mais alta do que a de países desenvolvidos, como os europeus e os da América do Norte. Além disso, o Brasil tem uma taxa de homicídios também superior à média da America Latina.

Outras informações relevantes presentes no documento incluem variações por regiões (as taxas de homicídios brasileiras são menores no Sul e Sudeste do que no Centro-Oeste, Nordeste e Norte). Os homicídios também atingem de maneira desigual os diferentes sexos, faixas etárias e etnias. Por exemplo, em 2016, a taxa de homicídios de negros (40 por 100 mil habitantes) foi bastante maior do que a de não-negros (16 por 100 mil habitantes). O grupo de homens jovens também é um alvo provilegiado da criminalidade, com assustadores 122 homicídios por 100 mil habitantes em 2016.

Baixe aqui o Atlas da Violência de 2018.

1.2 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (DEPEN, 2017)

Este documento reúne informações sobre o sistema penitenciário brasileiro. Segundo o documento, a população prisional brasileira era de 726 mil pessoas em junho de 2016. A título de comparação, havia apenas 90 mil pessoas presas em 1990. Além disso, a superlotação é grande: apesar dos 726 mil presos, as vagas seriam para apenas 368 mil.

Tal como acontece com os alvos de homicídios, as pessoas presas também se distribuem desigualmente entre diferentes sexos, faixas etárias e etnias. Do total de pessoas presas, cerca de 92% são homens, 55% têm entre 18 e 29 anos e 64% são negras. Quanto à escolaridade, 51% têm o ensino fundamental incompleto. Entre os homens presos, 53% não têm filhos; entre as mulheres, 26% não têm filhos. 32% dos presos ainda não foram condenados.

Entre os homens presos, os crimes cometidos mais comuns são o tráfico (26%) e o roubo (26%). Entre as mulheres, 62% estão presas por tráfico e 11% por roubo.

Baixe aqui o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2017.

2 Causas e prevenção da violência

Uma das medidas sociais mais antigas que buscam coibir a violência é a punição, sendo o aprisionamento uma forma comum de punição na atualidade. Porque a punição é uma prática recorrente no mundo todo, é difícil estimar com precisão quão efetiva ela é em prevenir o crime. Falando do contexto dos Estados Unidos, em que houve uma redução na criminalidade ao longo das últimas décadas, Riedel e Welsh (Criminal violence, OUP, 2015, p. 84) estimam que apenas cerca de 25% da redução da criminalidade deveu-se ao aumento do encarceramento. Vale destacar que lá, assim como atualmente no Brasil, a violência continuou aumentando mesmo em períodos em que a taxa de encarceramento também estava aumentando. Isso sugere que outros fatores também precisam ser abordados se quisermos alcançar reduções mais drásticas da violência.

Estudos recentes em áreas como a psicologia, a neurociência e as ciências sociais sugerem uma série de fatores que podem contribuir para o comportamento violento. Abaixo apresento dois livros que buscam sintetizar uma parte do conhecimento disponível a esse respeito, bem como as alternativas que sugerem para a prevenção da violência.

2.1 A anatomia da violência, de Adrian Raine (Artmed, 2015)

Livro: Anatomia da violência, de Adrian Raine

Adrian Raine é um criminologista britânico que atualmente é professor na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. O livro A anatomia da violência introduz de maneira interessante o tema das bases neurobiológicas do comportamento violento e sua interação com fatores ambientais e sociais. O livro sintetiza décadas de estudos sobre o tema realizados pelo próprio Raine e por outros pesquisadores, e também explora suas implicações legais e para a elaboração de novas formas de tratamento e políticas sociais. Alguns dos fatores que parecem favorecer o comportamento violento abordados no livro:

  • Gênes: Entre outros exemplos, o livro aborda estudos sobre o gene MAOA, que parece estar envolvido na regulação da agressividade. Estudos sugerem que alterações nesse gene, que metaboliza vários neurotransmissores, resultam em um comportamento mais agressivo, especialmente em pessoas com um histórico de abusos.
  • Hormônios: o capítulo 6 aborda os efeitos de uma maior ou menor exposição à testosterona durante a gestação. Vários estudos sugerem haver uma conexão entre ser exposto a maiores níveis de testosterona e a agressividade ao longo da vida.
  • Adversidades durante a gestação: fatores como a deficiência nutricional de ferro e ômega 3, por exemplo, bem como a exposição ao álcool ou nicotina também se mostraram associados à agressividade.
  • Lesões ou variações no cérebro: alterações em áreas como o córtex pré-frontal (especialmente nas regiões dorsal e ventral) bem como nas amídalas, no hipocampo, entre outras, também estão associadas à agressividade. Quanto a esse assunto, que é uma das partes centrais do livro, o autor discute a hipótese de que os demais fatores discutidos possam afetar a agressividade através de seus efeitos no cérebro.

Sobre a possibilidade de novas formas de prevenção, Raine diz que “podemos mudar o cérebro de modo a mudar o comportamento [violento]. […] temos intervenções de cuidado pré-natal, enriquecimento precoce do ambiente, medicações e suplementos nutricionais que podem todos fazer uma diferença. Com base no modelo biossociológico que delineei aqui, temos técnicas promissoras para bloquear os processos fundacionais que acarretam disfunções cerebrais, que por sua vez predispõem um indivíduo à violência. Isso não foi completamente reconhecido no estudo tradicional do crime—e precisa ser se quisermos ser sinceros quanto a interromper o sofrimento e a dor associados à violência. Podemos esperar até que o leite já esteja derramado e que tenhamos de lidar com o infrator adulto reincidente que é tão difícil de mudar. É aí que estamos hoje. Ou podemos investir em programas de prevenção de base ampla que iniciem na infância e possam beneficiar a todos—uma abordagem da saúde pública para a prevenção da violência” (p. 301 na versão em inglês, em minha tradução).

O livro A anatomia da violência está disponível para compra na internet (por exemplo, na Estante Virtual e na Amazon.com.br). A versão em inglês está disponível na Library Genesis.

2.2 Violence in context: Current evidence on risk, protection, and prevention. Ed. por Todd Herrenkohl, Eugene Aisenberg, James Williams e Jeffrey Jenson (Oxford University Press, 2011)Livro: Violence in context

Este livro, em inglês, reúne capítulos focados em aspectos da violência juvenil relacionados a fatores sociais e familiares. Trata-se de um livro que aborda o contexto dos Estados Unidos, mas que também pode ser relevante para se pensar o contexto brasileiro.

No tema da prevenção, o livro adota a abordagem da chamada “ciência da prevenção”, que envolve as seguintes orientações: “(1) fatores associados com um comportamento problemático precisam ser modificados para se prevenir tal comportamento; (2) fatores de risco e proteção identificados em estudos empíricos devem ser os alvos dos esforços preventivos; (3) programas de prevenção precisam ser rigorosamente testados; e (4) programas eficazes devem ser disseminados e implementados fidedignamente em ambientes escolares e familiares” (p. 119).

Seguindo essa abordagem, o livro aborda fatores de risco e proteção, e sintetiza os programas de prevenção da violência testados que se mostraram efetivos nos contextos escolar, familiar e comunitário.

Fatores de risco (aumentam as chances de comportamento violento) (ver pp. 115-116):

  • Biológicos: hereditariedade, sexo masculino, altos níveis de testosterona, baixos níveis de serotonina
  • Psicológicos: impulsividade, hiperatividade, inclinação a assumir riscos, problemas de saúde mental
  • Familiares: criminalidade dos pais, abuso e negligência infantil, conflitos familiares, baixos níveis de interação e ligação com a família, práticas de gerenciamento familiar excessivamente punitivas ou permissivas, mudanças frequentes de residência, sair de casa antes dos 16 anos
  • Escolares: baixa frequência, suspensão, abandono, baixas expectativas acadêmicas, ligação fraca com a escola, desempenho escolar baixo
  • Pares: pares ou irmãos delinquentes ou violentos, participação em gangues
  • Comunidade: pobreza no bairro e densidade populacional, desorganização, mobilidade alta dos moradores
  • Situacionais: relação entre vítima-vitimizador, abuso de drogas, disponibilidade de armas

Alguns aspectos de intervenções que se mostraram efetivas (capítulo 8):

  • Na escola: Programas para o aprendizado social e emocional, os quais buscam desenvolver habilidades para relações sociais saudáveis, para a resolução de conflitos e para regulação das emoções e da impulsividade, de modo a prevenir o comportamento agressivo. Esse tipo de programa é dirigido a crianças no ambiente escolar e pode combinar outros elementos, como o envolvimento dos pais.
  • Na família: Programas pré-natais e perinatais que buscam dar apoio aos pais em assuntos relacionados aos cuidados durante a gestação e com o bebê, ao desenvolvimento dos laços afetivos, entre outros. Programas desse tipo podem promover a saúde das crianças e se mostraram também efetivos na prevenção de que a criança fosse vítima de abusos e que cometessem atos violentos na adolescência. Outros programas abordados no livro focam-se em programas voltados a adolescentes que já se mostraram significativamente agressivos.

Além de descrever programas que se mostraram efetivos na prevenção da violência, o livro também menciona páginas na internet vinculadas a centros de pesquisa sobre o assunto. Algumas dessas páginas incluem o Blueprints for Violence Prevention, vinculado à Universidade do Colorado, o Social Programs that Work, entre outros.

O livro Violence in Context está disponível para venda em sites como Amazon.com e BookDepository.com. O livro também é acessível na Library Genesis.

3  Palavras finais

As causas e a prevenção do crime e da violência formam um tema complexo. Esta postagem fez um passeio por vários ramos da temática a partir de quatro fontes principais. Não gostaria de sugerir que questões relativas à violência se reduzem a questões científicas. Certamente há uma infinidade de questões éticas, legais e culturais importantes que sequer foram levantadas aqui. Apesar disso, e da simplificação inevitável em um espaço como este, espero que esta postagem possa ser útil aos que estiverem interessados em estudar o tema de modo mais aprofundado. Como sempre, comentários, críticas e sugestões são bem-vindos.

O texto Crime e violência: Dados, causas e prevenção foi publicado originalmente em fischborn.wordpress.com.

O que a ciência tem a dizer sobre a responsabilidade moral?

A investigação sobre livre-arbítrio e responsabilidade realizada nas últimas décadas tem contado cada vez mais com a participação conjunta de filósofos e cientistas. Parte do que motivou essa interação crescente foi um conjunto de estudos publicados na década de 1980 pelo neurocientista Benjamin Libet e colaboradores. Libet descobriu que um padrão de atividade neural comumente detectado antes de movimentos espontâneos simples antecedia em cerca de 350 milisegundos o momento em que os participantes do estudo relatavam ter decidido realizar esses movimentos. Libet argumentou que esse resultado restringia o tipo de controle que podemos ter sobre nossas ações. Afinal, se o cérebro começa a preparar nossos movimentos antes de termos decidido realizá-los, que tipo de controle podemos ainda ter sobre o que fazemos?

Os resultados e questionamentos de Libet motivaram uma discussão intensa não só sobre livre-arbítrio, mas também sobre a responsabilidade moral, já que geralmente se aceita que não pode haver responsabilidade sem livre-arbítrio. Desde então, filósofos e cientistas têm atuado conjuntamente para entender o que poderiam ser a liberdade e a responsabilidade, e se os seres humanos podem de fato ser livres e responsáveis. Como resultado dessa discussão, o livre-arbítrio e a responsabilidade, que por milênios pareceram um assunto exclusivo dos filósofos, passaram a ser também um assunto para cientistas.

Mas qual é a contribuição que a ciência pode dar à discussão sobre responsabilidade moral? Essa é uma questão com a qual tenho me ocupado em minha pesquisa de doutorado, e aqui gostaria de propor uma resposta. Segundo essa proposta, há pelo menos três modelos para se pensar a ciência da responsabilidade, ou seja, três maneiras gerais de se delimitar o papel que a ciência pode desempenhar na discussão sobre responsabilidade moral. Especificar esses modelos envolve, entre outras coisas, dizer que questões uma ciência da responsabilidade moral deveria responder. A seguir, descrevo cada um desses modelos e indico brevemente por que considero o terceiro deles o mais promissor.

1. Modelo mínimo

Quando alguém é responsável por certa ação ou acontecimento é por vezes apropriado responder ou reagir a essa pessoa de certa maneira. Exemplos dessas reações incluem a atribuição de culpa ou o repúdio (quando a ação ou acontecimento é considerado moralmente condenável) e o elogio (quando a ação é moralmente louvável). Mas o que torna alguém responsável por suas ações? Ao longo da história da filosofia, propuseram-se diversas condições tidas como necessárias para a responsabilidade moral. Por exemplo, é comum dizer que alguém só pode ser responsabilizado por aquilo que fez livremente, quando sua ação produziu consequências indesejáveis cuja ocorrência poderia razoavelmente prever, ou ainda que um agente responsável precisa ter um certo nível de racionalidade. Liberdade, conhecimento e racionalidade, segundo essa visão, são condições necessárias para a responsabilidade moral.

Mas embora a filosofia possa apontar abstratamente condições para que as pessoas possam ser responsabilizadas apropriadamente, pode não estar ao alcance do filósofo dizer se pessoas específicas ou os seres humanos em geral satisfazem essas condições. Em outras palavras, mesmo que os filósofos possam dizer quais são as condições necessárias e suficientes para a existência de seres humanos livres e responsáveis, pode ser que uma atividade exterior à filosofia seja necessária para dizer quando essas condições são efetivamente satisfeitas.

Segundo o que chamo de modelo mínimo, são exatamente algumas dessas questões que cabe à ciência da responsabilidade responder. Ao fazê-lo, a ciência contribui com a terefa de dizer se os seres humanos são efetivamente responsáveis—se satisfazem as condições da responsabilidade moral. Os estudos de Libet, mencionados acima, podem ser interpretados dessa maneira. Enquanto a filosofia pode dizer se a responsabilidade exige ou não que nossas ações sejam iniciadas conscientemente, a neurociência pode ajudar a dizer se nossas ações são ou não iniciadas conscientemente. No modelo mínimo, portanto, a filosofia contribui dizendo quais são as condições da responsabilidade, enquanto a ciência ajuda a dizer se essas condições são satisfeitas pelos seres humanos.

2. Modelo das intuições populares

Enquanto o modelo mínimo é atualmente o mais difundido na literatura filosófica, um segundo modelo começou a ser desenvolvido mais recentemente no interior do movimento da chamada filosofia experimental. A filosofia experimental caracteriza-se por incluir o uso de métodos tomados das demais ciências na investigação filosófica. Em um dos projetos associados ao movimento, buscou-se intervir em uma disputa filosófica milenar a respeito do livre-arbítrio e da responsabilidade moral, a saber, a disputa sobre se é possível ou não que haja livre-arbítrio e responsabilidade moral se a tese do determinismo for verdadeira.

A proposta experimental busca contribuir com o debate ao examinar as intuições de pessoas comuns (i.e. de pessoas que não treinadas no assunto) a respeito da possibilidade de existirem pessoas livres e responsáveis em cenários deterministas. A expectativa, no interior desse movimento, é que saber como as pessoas pensam a questão cotidianamente poderia ajudar a delimitar a teorização filosófica a respeito.

A literatura pertencente a essa tradição é atualmente vasta e inclui resultados conflitantes. Para meus propósitos neste texto, importa salientar que o movimento da filosofia experimental mencionado abre espaço para um novo papel para a ciência da responsabilidade moral. Enquanto no modelo mínimo a ciência apenas ajudaria a dizer se e quando as condições necessárias e suficientes para a responsabilidade moral são satisfeitas, a investigação da filosofia experimental concede à ciência um papel na própria estipulação de tais condições. Porque essa proposta dá um lugar central à investigação científica das intuições populares a respeito da responsabilidade, chamo de modelo das intuições populares à proposta resultante.

3. Modelo do aprimoramento

O terceiro e último modelo que descrevo—o modelo que entendo como o mais completo e promissor—entende a ciência da responsabilidade moral como parte de um empreendimento cognitivo que visa tanto entender o funcionamento de nossas práticas de responsabilidade como apontar maneiras pelas quais essas práticas poderiam ser aprimoradas. Nesse modelo, cabe à ciência responder a dois grandes grupos de questões, sendo que a especificação do segundo deles envolve uma intervenção decisiva de considerações de tipo normativo—por exemplo, considerações derivadas do trabalho em ética normativa ou aplicada.

O primeiro grupo de questões que o modelo de aprimoramento atribui à ciência pergunta pelas causas e efeitos de nossas práticas de responsabilidade, tal como encontradas em nossas vidas cotidianas. Aqui interessa saber quais fatores estão operando causalmente quando, por exemplo, culpamos ou elogiamos alguém, ou quando quando estamos dispostos a aprovar a distribuição de punição ou recompensa.

A teoria psicológica sobre a atribuição de culpa desenvolvida por Bertram Malle, Steve Guglielmo e Andrew Monroe no artigo “A theory of blame” exemplifica a investigação de questões pertencentes ao primeiro grupo. Segundo essa teoria, atribuições de culpa surgem quando se considera que alguém violou uma norma intencionalmente sem nenhuma boa razão para fazê-lo, ou quando uma norma foi violada por alguém que tinha a obrigação e capacidade de evitar tal violação. Ao apontar as causas de um dos aspectos de nossas práticas de responsabilidade, a saber, a atribuição de culpa, essa investigação responde ao primeiro grupo de questões científicas especificadas pelo modelo do aprimoramento.

O segundo grupo de questões científicas que o modelo do aprimoramento especifica é condicional a uma avaliação normativa do funcionamento das práticas de responsabilidade, tal como descritas pela investigação guiada pelo primeiro grupo de questões. A ideia é que qualquer aspecto de nossas práticas de responsabilidade pode revelar-se problemático quando examinado cuidadosamente a partir de teorias normativas. Por essa razão, o segundo grupo de questões que a ciência da responsabilidade moral recebe é sobre as maneiras pelas quais se poderia alterar o funcionamento de nossas práticas de responsabilidade de modo a melhorar os aspectos considerados problemáticos.

Darei aqui um único exemplo de como essa segunda parte da ciência da responsabilidade pode funcionar. Um dos setores de nossas práticas de responsabilidade inclui a maneira como os pais e cuidadores respondem ao comportamento das crianças no processo de criá-las e educá-las. Uma série de estudos conduzidos desde a década de 1980 mostrou que há várias consequências negativas associadas a uma das práticas por vezes comum nesse processo, a saber, o uso de punição física como resposta a comportamentos considerados inapropriados. Descobriu-se que a punição física aumenta a probabilidade de se desenvolver dificuldades afetivas e cognitivas na vida adulta, bem como a disposição ao comportamento agressivo.

Essas descobertas revelam efeitos de certo tipo de prática punitiva e, por isso, respondem a questões do primeiro grupo. Mas ao estarmos cientes desses efeitos, podemos buscar avaliar a eles e suas causas do ponto de vista ético. Podemos nos perguntar, por exemplo, se é aceitável ou desejável que crianças sejam submetidas a uma forma de responsabilização e educação que se sabe ter as consequências negativas apontadas. Como não é de estranhar, muitas pessoas avaliam essas práticas como problemáticas, e defendem o fim da punição física de crianças. Dada essa avaliação, pode-se levantar um segundo grupo de questões científicas que dizem respeito a como levar a cabo a modificação das práticas de punição física de crianças. Que tipos de intervenções seriam mais efetivas para esse propósito? Que tipos de leis, programas de treinamento ou campanhas, por exemplo, poderiam ajudar a diminuir essa prática e prevenir os efeitos negativos que lhe estão associados?

Essa é, em resumo, a proposta de uma ciência da responsabilidade moral guiada pelo modelo do aprimoramento. Uma das consequências desse modelo, e um traço em que se distingue dos outros modelos considerados, é que permite gerar diretamente aplicações do empreendimento filosófico e científico para o aprimento das práticas sociais de responsabilidade tal como efetivamente ocorrem em nossas vidas cotidianas. Uma outra consequência é que permite tirar a ênfase de algumas questões que foram predominantes na ciência guiada pelos outros modelos. Um exemplo são questões sobre determinismo e sobre a compatibilidade entre determinismo e responsabilidade. No modelo de aprimoramento, o foco são as causas e efeitos das práticas de responsabilidade, e há razões para se pensar que questões sobre o determinismo não estão entre as causas e efeitos mais relevantes. Nesse caso, essas questões se tornam secundárias no modelo do aprimoramento, já que o foco da investigação científica recai sobre as causas e efeitos das práticas de responsabilidade, e sobre como modificar seus aspectos normativamente problemáticos.

Fonte: A proposta sobre a ciência da responsabilidade moral apresentada nesta postagem é desenvolvida em maiores detalhes em: Fischborn, M. Questions for a science of moral responsibility, Review of Philosophy and Psychology, 2017 (on-line). [Acesso alternativo aqui].

Curso sobre decisões imorais em instituições

Em tempos de preocupações com a corrupção nas mais variadas instituições brasileiras, divulgo este curso da Universidade de Lausanne, da Suíça, sobre decisões imorais em instituições, que iniciará no Coursera.org no dia 15 de setembro de 2015:

Unethical decision making in institutions

Course Syllabus

Broad outline of the topics covered in the seminar:

  1.  Introduction to ethical and unethical decision making
  2.  Introduction to unethical decisions in organizations
  3.  The power of frames: How people construct their reality
  4.  The power of routines
  5.  The power of strong situations
  6.  The power of institutions
  7.  The wind of change: How to fight ethical blindness

[Acessar]