Durante meu trabalho com questões relacionadas à responsabilidade moral e à punição, entrei em contato com uma vasta literatura sobre as causas e a prevenção do crime e da violência. Esta postagem busca compartilhar uma parte dessa literatura de modo a facilitar o estudo deste tema que, além de relevante por si só, promete estar em alta neste ano eleitoral.
1. Alguns dados sobre o Brasil
Para se entender e prevenir o crime, é preciso que se mantenha um registro preciso e completo sobre sua ocorrência. Por razões variadas, nem sempre é fácil encontrar esse tipo de registro. Os materiais abaixo são relatórios que reúnem uma parcela das informações disponíveis sobre o Brasil.
1.1 Atlas da violência (Ipea e FBSP, 2018)
Este documento apresenta dados sobre homicídios no Brasil. Segundo o documento, a taxa de homicídios brasileira foi de pouco mais de 30 homicídios por 100 mil habitantes em 2016 (taxa que era de menos de 27 em 2006). Para facilitar a comparação, seguem algumas outras taxas de homicídios por 100 mil habitantes disponíveis no documento:
- Brasil: 30 (em 2016)
- Estimativa mundial: entre 6 e 9 (de 2007 a 2012)
- Américas (todas): entre 14 e 16 (2007-2012)
- América do Sul: cerca de 22 (2007-2012)
- América do Norte: 5
- Europa e Oceania: menos de 2
Como se pode inferir desses dados, a taxa de homicídios brasileira é muito mais alta do que a de países desenvolvidos, como os europeus e os da América do Norte. Além disso, o Brasil tem uma taxa de homicídios também superior à média da America Latina.
Outras informações relevantes presentes no documento incluem variações por regiões (as taxas de homicídios brasileiras são menores no Sul e Sudeste do que no Centro-Oeste, Nordeste e Norte). Os homicídios também atingem de maneira desigual os diferentes sexos, faixas etárias e etnias. Por exemplo, em 2016, a taxa de homicídios de negros (40 por 100 mil habitantes) foi bastante maior do que a de não-negros (16 por 100 mil habitantes). O grupo de homens jovens também é um alvo provilegiado da criminalidade, com assustadores 122 homicídios por 100 mil habitantes em 2016.
Baixe aqui o Atlas da Violência de 2018.
1.2 Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (DEPEN, 2017)
Este documento reúne informações sobre o sistema penitenciário brasileiro. Segundo o documento, a população prisional brasileira era de 726 mil pessoas em junho de 2016. A título de comparação, havia apenas 90 mil pessoas presas em 1990. Além disso, a superlotação é grande: apesar dos 726 mil presos, as vagas seriam para apenas 368 mil.
Tal como acontece com os alvos de homicídios, as pessoas presas também se distribuem desigualmente entre diferentes sexos, faixas etárias e etnias. Do total de pessoas presas, cerca de 92% são homens, 55% têm entre 18 e 29 anos e 64% são negras. Quanto à escolaridade, 51% têm o ensino fundamental incompleto. Entre os homens presos, 53% não têm filhos; entre as mulheres, 26% não têm filhos. 32% dos presos ainda não foram condenados.
Entre os homens presos, os crimes cometidos mais comuns são o tráfico (26%) e o roubo (26%). Entre as mulheres, 62% estão presas por tráfico e 11% por roubo.
Baixe aqui o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2017.
2 Causas e prevenção da violência
Uma das medidas sociais mais antigas que buscam coibir a violência é a punição, sendo o aprisionamento uma forma comum de punição na atualidade. Porque a punição é uma prática recorrente no mundo todo, é difícil estimar com precisão quão efetiva ela é em prevenir o crime. Falando do contexto dos Estados Unidos, em que houve uma redução na criminalidade ao longo das últimas décadas, Riedel e Welsh (Criminal violence, OUP, 2015, p. 84) estimam que apenas cerca de 25% da redução da criminalidade deveu-se ao aumento do encarceramento. Vale destacar que lá, assim como atualmente no Brasil, a violência continuou aumentando mesmo em períodos em que a taxa de encarceramento também estava aumentando. Isso sugere que outros fatores também precisam ser abordados se quisermos alcançar reduções mais drásticas da violência.
Estudos recentes em áreas como a psicologia, a neurociência e as ciências sociais sugerem uma série de fatores que podem contribuir para o comportamento violento. Abaixo apresento dois livros que buscam sintetizar uma parte do conhecimento disponível a esse respeito, bem como as alternativas que sugerem para a prevenção da violência.
2.1 A anatomia da violência, de Adrian Raine (Artmed, 2015)
Adrian Raine é um criminologista britânico que atualmente é professor na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. O livro A anatomia da violência introduz de maneira interessante o tema das bases neurobiológicas do comportamento violento e sua interação com fatores ambientais e sociais. O livro sintetiza décadas de estudos sobre o tema realizados pelo próprio Raine e por outros pesquisadores, e também explora suas implicações legais e para a elaboração de novas formas de tratamento e políticas sociais. Alguns dos fatores que parecem favorecer o comportamento violento abordados no livro:
- Gênes: Entre outros exemplos, o livro aborda estudos sobre o gene MAOA, que parece estar envolvido na regulação da agressividade. Estudos sugerem que alterações nesse gene, que metaboliza vários neurotransmissores, resultam em um comportamento mais agressivo, especialmente em pessoas com um histórico de abusos.
- Hormônios: o capítulo 6 aborda os efeitos de uma maior ou menor exposição à testosterona durante a gestação. Vários estudos sugerem haver uma conexão entre ser exposto a maiores níveis de testosterona e a agressividade ao longo da vida.
- Adversidades durante a gestação: fatores como a deficiência nutricional de ferro e ômega 3, por exemplo, bem como a exposição ao álcool ou nicotina também se mostraram associados à agressividade.
- Lesões ou variações no cérebro: alterações em áreas como o córtex pré-frontal (especialmente nas regiões dorsal e ventral) bem como nas amídalas, no hipocampo, entre outras, também estão associadas à agressividade. Quanto a esse assunto, que é uma das partes centrais do livro, o autor discute a hipótese de que os demais fatores discutidos possam afetar a agressividade através de seus efeitos no cérebro.
Sobre a possibilidade de novas formas de prevenção, Raine diz que “podemos mudar o cérebro de modo a mudar o comportamento [violento]. […] temos intervenções de cuidado pré-natal, enriquecimento precoce do ambiente, medicações e suplementos nutricionais que podem todos fazer uma diferença. Com base no modelo biossociológico que delineei aqui, temos técnicas promissoras para bloquear os processos fundacionais que acarretam disfunções cerebrais, que por sua vez predispõem um indivíduo à violência. Isso não foi completamente reconhecido no estudo tradicional do crime—e precisa ser se quisermos ser sinceros quanto a interromper o sofrimento e a dor associados à violência. Podemos esperar até que o leite já esteja derramado e que tenhamos de lidar com o infrator adulto reincidente que é tão difícil de mudar. É aí que estamos hoje. Ou podemos investir em programas de prevenção de base ampla que iniciem na infância e possam beneficiar a todos—uma abordagem da saúde pública para a prevenção da violência” (p. 301 na versão em inglês, em minha tradução).
O livro A anatomia da violência está disponível para compra na internet (por exemplo, na Estante Virtual e na Amazon.com.br). A versão em inglês está disponível na Library Genesis.
2.2 Violence in context: Current evidence on risk, protection, and prevention. Ed. por Todd Herrenkohl, Eugene Aisenberg, James Williams e Jeffrey Jenson (Oxford University Press, 2011)
Este livro, em inglês, reúne capítulos focados em aspectos da violência juvenil relacionados a fatores sociais e familiares. Trata-se de um livro que aborda o contexto dos Estados Unidos, mas que também pode ser relevante para se pensar o contexto brasileiro.
No tema da prevenção, o livro adota a abordagem da chamada “ciência da prevenção”, que envolve as seguintes orientações: “(1) fatores associados com um comportamento problemático precisam ser modificados para se prevenir tal comportamento; (2) fatores de risco e proteção identificados em estudos empíricos devem ser os alvos dos esforços preventivos; (3) programas de prevenção precisam ser rigorosamente testados; e (4) programas eficazes devem ser disseminados e implementados fidedignamente em ambientes escolares e familiares” (p. 119).
Seguindo essa abordagem, o livro aborda fatores de risco e proteção, e sintetiza os programas de prevenção da violência testados que se mostraram efetivos nos contextos escolar, familiar e comunitário.
Fatores de risco (aumentam as chances de comportamento violento) (ver pp. 115-116):
- Biológicos: hereditariedade, sexo masculino, altos níveis de testosterona, baixos níveis de serotonina
- Psicológicos: impulsividade, hiperatividade, inclinação a assumir riscos, problemas de saúde mental
- Familiares: criminalidade dos pais, abuso e negligência infantil, conflitos familiares, baixos níveis de interação e ligação com a família, práticas de gerenciamento familiar excessivamente punitivas ou permissivas, mudanças frequentes de residência, sair de casa antes dos 16 anos
- Escolares: baixa frequência, suspensão, abandono, baixas expectativas acadêmicas, ligação fraca com a escola, desempenho escolar baixo
- Pares: pares ou irmãos delinquentes ou violentos, participação em gangues
- Comunidade: pobreza no bairro e densidade populacional, desorganização, mobilidade alta dos moradores
- Situacionais: relação entre vítima-vitimizador, abuso de drogas, disponibilidade de armas
Alguns aspectos de intervenções que se mostraram efetivas (capítulo 8):
- Na escola: Programas para o aprendizado social e emocional, os quais buscam desenvolver habilidades para relações sociais saudáveis, para a resolução de conflitos e para regulação das emoções e da impulsividade, de modo a prevenir o comportamento agressivo. Esse tipo de programa é dirigido a crianças no ambiente escolar e pode combinar outros elementos, como o envolvimento dos pais.
- Na família: Programas pré-natais e perinatais que buscam dar apoio aos pais em assuntos relacionados aos cuidados durante a gestação e com o bebê, ao desenvolvimento dos laços afetivos, entre outros. Programas desse tipo podem promover a saúde das crianças e se mostraram também efetivos na prevenção de que a criança fosse vítima de abusos e que cometessem atos violentos na adolescência. Outros programas abordados no livro focam-se em programas voltados a adolescentes que já se mostraram significativamente agressivos.
Além de descrever programas que se mostraram efetivos na prevenção da violência, o livro também menciona páginas na internet vinculadas a centros de pesquisa sobre o assunto. Algumas dessas páginas incluem o Blueprints for Violence Prevention, vinculado à Universidade do Colorado, o Social Programs that Work, entre outros.
O livro Violence in Context está disponível para venda em sites como Amazon.com e BookDepository.com. O livro também é acessível na Library Genesis.
3 Palavras finais
As causas e a prevenção do crime e da violência formam um tema complexo. Esta postagem fez um passeio por vários ramos da temática a partir de quatro fontes principais. Não gostaria de sugerir que questões relativas à violência se reduzem a questões científicas. Certamente há uma infinidade de questões éticas, legais e culturais importantes que sequer foram levantadas aqui. Apesar disso, e da simplificação inevitável em um espaço como este, espero que esta postagem possa ser útil aos que estiverem interessados em estudar o tema de modo mais aprofundado. Como sempre, comentários, críticas e sugestões são bem-vindos.
O texto Crime e violência: Dados, causas e prevenção foi publicado originalmente em fischborn.wordpress.com.