Searle e as regras reguladoras e constitutivas

Foi-nos proposto numa disciplina sobre ensino de filosofia escrever sobre o assunto “regras”. O texto deveria buscar contemplar os mais diversos usos que fazemos da noção de regra, incluindo ainda o modo como outras disciplinas do currículo escolar usam tal conceito. Foi considerada interessante uma distinção entre regras constitutivas e regras reguladoras, feita por John Searle no capítulo 2, seção 5 do livro Speech Acts (Atos de Fala). No que segue tentarei de apresentar esta distinção, chamando atenção para o que seriam as regras constitutivas.

Como já dito a distinção feita é entre dois tipos de regras: as constitutivas e as reguladoras. Segundo o próprio Searle:

“[…] nós poderíamos dizer que regras reguladoras regulam formas de comportamento anterior e independentemente [de tais regras] existentes; por exemplo, muitas regras de etiqueta regulam relacionamentos interpessoais que existem independentemente das regras. Mas regras constitutivas não meramente regulam, elas criam ou definem novas formas de comportamento. As regras do futebol ou xadrez, por exemplo, não meramente regulam o jogo de futebol ou xadrez, mas, tal como são, elas criam a própria possibilidade de jogar tais jogos. As atividades de jogar futebol ou xadrez são constituídas pelo agir de acordo com as (ao menos um vasto subgrupo de) regras apropriadas.”

O que Searle quer destacar é que há regras que meramente regulam e outras que regulam uma atividade que elas também especificam o que seja. Não existiria isto que chamamos de jogo de xadrez se não houvesse um sistema de regras que dissesse como se deve proceder para estar jogando xadrez. Uma pessoa que não tenha a mínima noção do que seja um jogo de tabuleiro (e, portanto também um jogo de xadrez) poderia assim se expressar ao ver duas pessoas jogando xadrez:

“ali há duas pessoas, cada uma sentada do lado de uma tábua quadrada, na qual estão pintados diversos quadradinhos pintados, de modo intercalado, nas cores branco e preto. Sobre esta tábua há estatuetas de diversas formas, umas amarelas, outras pretas. Estas duas pessoas ficam em silêncio e vagarosamente cada um (um depois do outro) mexe uma estatueta sobre a tábua…”

O que tento mostrar com este exemplo é que sem algo (um conjunto de regras) que diga o que é jogar xadrez, não podemos dizer que um determinado comportamento de dois indivíduos é uma partida de xadrez. O outro tipo de regras, as reguladoras (ou normativas), poderia ser exemplificado por regras de etiqueta. Podemos muito bem dizer que estamos comendo peixe, mesmo que haja uma regra de etiqueta que diga como devemos comer peixe. De qualquer maneira estaremos comendo peixe mesmo que façamos isto sem respeitar uma regra que diga, por exemplo, que não se deve comer com as mão, ou algo do tipo.

Pretendo, num próximo post, usar desta distinção para fazer uma explicação mais detalhada dos diversos tipos de regras com as quais nos deparamos no dia a dia.


1 Searle, Speech Acts. New York, 2007, pg 34s, minha tradução.

Agostinho e o problema do mal na Idade Média

Discutimos hoje na disciplina de Filosofia Medieval o Problema do Mal na Idade Média. Mais especificamente, fizemos isto baseando-nos no Livro VII das Confissões de Santo Agostinho. No que segue tentarei reproduzir o problema.

A discussão toda parece começar dos seguintes pressupostos:

(a) Deus (por definição) é o Ser mais bom, mais poderoso, mais sabido que podemos conceber.

(b) Deus criou todas as criaturas (o homem, o tempo, e tudo o mais).

Partindo dessas afirmações a pergunta que se nos coloca é:

Como pode haver mal no mundo se Deus é todo bondoso e tudo o que existe foi feito por ele?

A pergunta é problemática, pois se tudo é obra de Deus, então o mal também é sua obra e, portanto, Deus também é mal. Mas, ora, a definição de Deus não é compatível com ele ser em alguma medida mal, pois, se Deus é aquilo que é todo bondoso e perfeito, algo que é mal em qualquer medida não pode ser Deus.

Penso que o problema pode ficar mais claro se explicar-mos assim (vou reconstruir o conceito de Deus sob a variável “x”): “x” é o nome que damos àquilo que de mais perfeito podemos conceber. Para uma coisa ser chamada de “x”, esta coisa tem de ser perfeitamente boa, perfeitamente sábia, perfeitamente poderosa. Agora pense que y cria diversas criaturas, entre elas nós. Acontece que estas criaturas não são perfeitas, estão sujeitas à mudança, à corrupção, à maldade. Poderemos dizer que y é x? Uma coisa toda poderosa e boa poderia criar algo que não fosse perfeitamente bom, algo imperfeito, ou ainda algo capaz de maldade? Ou seja, poderíamos dizer que Deus é x mesmo assim? Ou ainda: poderíamos chamar de x algo que cria algo mal?

Uma parte da solução de Agostinho é dizer que o mal não é uma criatura, portanto, Deus não o criou. Mas e de onde vem o mal que admitimos que no mundo? Segundo Agostinho, este mal se origina no livre arbítrio da vontade humana. O ser humano, por não ser perfeito (se fosse seria Deus, ok!?) está suscetível a realizar atos maus. Faz isto quando não vai em direção a Deus, segundo Agostinho. O mal será, para ele, uma perversão da vontade desviada do ser supremo que é Deus. Assim, Agostinho consegue escapar de dizer que o mal é criação divina.

Mas e aí: Deus cria algo (o homem) capaz de cometer o mal. Deus (se é todo sabido) sabia disto antes de criar. Por que criou, então, se sabia que a sua criação seria imperfeita e sujeita a cometer o mal?

Uma resposta que se pode dar é que a vontade livre é uma condição para a felicidade humana. Sendo assim ela é em si mesma um bem e só pode ser fonte de mal através de seu mal uso pelo homem. O homem que, por ser criatura divina é bom, não é perfeitamente bom (pois se fosse seria Deus). Mas, mesmo sendo em alguma medida bom, é corruptível e capaz de agir maldosamente. O problema todo é como compatibilizar isto: Um Deus todo bom e poderoso com uma criatura Sua que é capaz de fazer o mal.

Este problema “metafísico-teológico” é algo que alimenta grande parte da Filosofia Medieval. Volto a postar quando ficar sabendo que desdobramentos  esta discussão terá na história posterior da  filosofia.